Washington Araújo
A humanidade que sobreviveu ao século XX, século marcado por duas carnificinas mundiais, centenas de conflitos armados continentais e internacionais e vítimas aos milhões, sofre de um elevado grau de déficit de confiança em seu futuro, déficit este causado pela falência múltipla de suas tradicionais fontes de autoridade moral, nas quais se inserem as principais instituições e lideranças religiosas, os mais renomados pensadores, filósofos e luminares da educação e a vasta maioria de seus governantes, independentemente do regime político-ideológico que os amparem.
Superada a perigosa polaridade ideológica entre socialismo e capitalismo, temos na abertura deste século XXI, disparidades gritantes a separar, como abismos de miséria humana, ricos e pobres.
Esta dicotomia tem sido identificada por diversas vertentes do pensamento pós-iluminista e faz parte da agenda de preocupações tanto de instituições – governamentais e não-governamentais – quanto de indivíduos – muitos, apenas bem intencionados – e que nada mais desejam que o bem-estar de toda a espécie humana.
No entanto, torna-se evidente, que a mera identificação do problema não tem sido capaz de ensejar verdadeiro antídoto à crise de valores morais e espirituais, à derrocada econômico-financeira e à falta de esperanças que permeia as atuais e, em conseqüência, as novas gerações, situações de letargia e desalento em que se encontra formidáveis contingentes populacionais do planeta.
Leis em excesso, bem-estar coletivo de menos. Os governos, não obstante suas ideologias, sistemas econômicos e avanços culturais e tecnológicos, têm sido céleres em atuar no caminho do Direito Positivo – e, com isto, cada país tem gerado novas instâncias jurídicas, novas formas de direito, com novos arcabouços de leis, e infindável manancial de normas e regulamentos. A cada falha nos procedimentos governamentais, novas leis são criadas.
A cada nova modalidade de crime, novas dosagens de punição são apresentadas a sociedades humanas às voltas com altas doses de desilusão. Atacam-se os efeitos delituosos de uma natureza humana afeita a entronizar como essência de sua existência o livre consumo de bens materiais e a dedicar seu precioso tempo vital em busca por saciedade dos instintos e deixa-se ao largo, como assunto de importância absolutamente secundária, os reais valores morais que, tão-somente, poderiam nos alçar a uma compreensão abrangente sobre a natureza humana.
As sociedades expressam insatisfação – em níveis cada vez mais elevados – através dos modernos meios de comunicação, acerca das decisões dos governos, apresentam descrença quanto à razoabilidade de políticas públicas adotadas e certa indiferença para com decisões tomadas por organismos multilaterais, como os que estão sob a égide do sistema Nações Unidas.
Torna-se corriqueira postura de crítica acerba de segmentos sociais com maior acesso aos meios midiáticos para externar desapreço e contrariedade com a gestação, execução e avaliação de políticas públicas. Nesta quadra em que vivemos, à simples menção da expressão ‘governo’, tem-se a impressão que o vocábulo carrega em seu bojo o odor putrefato da corrupção.
E a corrupção, inicialmente vista como desvio criminoso de recursos públicos para atender a interesses pessoais e egoísticos por parte dos detentores de poder político, econômico e social, começa a ser vista como algo ainda mais letal para a saúde do tecido social das nações. Algo que obscurece a visão que a corrupção nos torna insensíveis e arredios àquelas virtudes milenares que poderiam engendrar à criação de um novo mundo possível, fundado na solidariedade e na compreensão que, como seres de uma única espécie, temos um destino comum a partilhar.
Dentre as virtudes humanas mais necessárias nos tempos que correm existe esse profundo vazio de significado da própria vida humana. É que nas relações humanas, tanto na esfera dos governos quanto da vida ordenada das sociedades, parece não haver espaço para a pureza de intenções, a veracidade, a honestidade, a lealdade, quando fazemos a travessia do mundo das ideias para o chão duro da realidade.
Relógio da crise mostra impaciência
O relógio da crise não admite pausas nem hesitações. É chegado o momento para abrir um novo ciclo na história. E isto requer uma profunda imersão em temas milenares e que nos desafiam, desde aquele longínquo momento em que pela primeira vez pisamos no palco da História.
Faz-se inadiável uma imersão sobre o propósito da vida, a compreensão da natureza humana, o entendimento de que integramos um todo único e indivisível – que inclui o ser humano e o meio-ambiente igualmente – e o conceito de que temos uma pesada responsabilidade moral e social para proteger e amparar as populações vulneráveis e sofredoras de nossa espécie.
São desafios e, portanto, precisam ser superados. Tratemos das causas e deixemos de tratar os efeitos com quimeras paliativas de sempre.
Em nossa longa história humana pontuada por tentativas de erros e acertos bem podemos inverter o curso de ação da história. E isto requer o apreço pela rica diversidade humana, o respeito às múltiplas expressões de como nos relacionarmos com o Sagrado e, também, a indispensabilidade de reputarmos a pluralidade de pensamento e de opinião como meios efetivos para a geração de novos conhecimentos, no contexto que somos chamados a produzir uma cultura fundada na paz entre povos, raças, etnias, credos e classes sociais.
O clamor por transformações sociais que principiem na raiz de todos os problemas surgem por todas as partes. Partem das cidadelas conservadoras do pensamento eclesiástico, ainda voltado para a tolerância e não para o respeito e o apreço às diferenças.
Este clamor se eleva com contundência e grande nível de estridência contra a manutenção de sistemas econômicos obtusos e excludentes, duramente estabelecidos, defendidos à custa do sacrifício do bem-estar de sociedade inteiras, muitas vezes vistas como “campos de testes”, e os próprios seres humanos não mais que “ratos de laboratório”.
A crise econômica da Europa e dos Estados Unidos são apenas fios desencapados de um mundo às voltas com formidável curto-circuito.
Os “indignados” da Espanha e os que se imolam nas praças e ruas públicas da Grécia, as centenas de milhares de jovens e adultos que engrossam filas por emprego em dezenas de países do antes chamado continente mais desenvolvido – a Europa – são não mais que outros fios desencapados dando conta que a fiação inteira encontra-se comprometida e sempre prestes a gerar novas fagulhas no já profundo oceano de desespero que assola as massas da humanidade.
O desespero humano decorre, em vasta medida, de uma realidade incômoda. É a realidade construída sobre falsos alicerces da injustiça secular, produto de inúmeras formas de destruição massiva, e tem, sem qualquer pudor, submetido povos e nações com menos recursos materiais a interesses subalternos de povos e nações detentoras de verdadeiras máquinas a movimentar a economia global, a indústria de guerras, transformadas rapidamente em fontes muito lucrativas de bens e dividendos econômicos. Seres humanos não mais são explodidos ao firmarem o pé sobre minas terrestres.
É o próprio sistema que se encontra minado: somos explodidos a cada vez que perdemos vagas de trabalho, que precisamos de cuidados médicos e não os temos, a cada escola que é fechada e a cada penitenciária que se inaugura. Parte expressiva da população mundial, mesmo sem terem disso consciência, são como minas humanas em movimento.
Cultura do descartável precisa, ela própria, ser descartada
As transformações sociais exigidas envolvem completa mudança dos atuais processos decisórios, geralmente enfeixados nas mentes e nas mãos de indivíduos que alcançaram poder e prestígio mediante processos de escolha contendo vícios insanáveis, como o uso de expressivos recursos financeiros desviados ardilosamente dos fins a que se destinavam, além de manipulação ostensiva de corações e mentes através do uso de meios de comunicação quase sempre monopolistas, e a serviço de interesses outros que não o bem-estar das populações às quais se propõem informar.
Os desvios de natureza financeira punem gravemente a promoção do bem-estar coletivo, o que inclui investimentos maciços na educação, saúde, segurança, geração de emprego e renda e a preservação do meio-ambiente.
Como escreveu o pensador Shoghi Effendi (1897-1957), “… governança, em essência, é uma prática moral e espiritual cuja bússola é encontrada no interior do coração humano.” Àqueles que realmente mostram preocupação pelos caminhos e descaminhos em que o mundo se encontra bem podem ouvir de todas as regiões a exigência inadiável para o estabelecimento de um novo paradigma civilizatório.
As crises que nos defrontam não podem mais ser contidas com medidas pontuais, com ações específicas, com planos e metas de curto e médio prazo, facilmente abandonados e por outros substituídos ao sabor dos acontecimentos do momento.
Este tempo passou e ao invés de deixar frutos, deixou miséria em grande profusão. A cultura do descartável precisa, ela própria, ser descartada. Medidas transitórias, em tempo algum, foram suficientes para sanar problemas permanentes.
E agora não pode ser diferente. Nunca o provisório ocupará o espaço do duradouro. A sociedade, vítima e algoz, responsável tanto por seus avanços científicos quanto por seus retrocessos morais e espirituais, bem poderia entender que ela própria é a atual face da crise maior que se prenuncia no horizonte.
Os valores culturais, cultivados ao longo de gerações, se espraiaram nessa busca frenética por bons descartáveis – e é como se o sentido da vida houvesse sido sequestrado por falsos brilhantes em sua contínua busca por ocultar o verdadeiro esplendor que emana do espírito humano.
É neste contexto que cidadania passa a ser sinônimo de consumismo: o indivíduo é tão cidadão quanto a sua capacidade para consumir. A capacidade de aquisição de bens materiais se transformou em capacidade de exercício da própria cidadania. E não existe nada mais equivocado que esta premissa, que traz em seu bojo, elevada carga de frustração em relação à realização do ser humano.
Postado no blog Cidadão do Mundo em 21/08/2013