Existiu um modo de vida antes da pandemia, existe um durante e existirá um modo de vida depois dela. As peças estão no tabuleiro e o jogo é em tempo real
Rafael Rosa*
Engraçado como uma “gripezinha” modificou o panorama global em pouco menos de seis meses após início dos casos. Engraçado ainda como o mundo inteiro, imbuído na atmosfera lucrativa de acúmulo de capital e com medo de qualquer possibilidade de prejuízo, subestimou o poder brutal da natureza. Nem precisa dizer sobre as asneiras que se diziam sobre o aquecimento global, aceleração das mudanças climáticas, e coisas do tipo, que eram vistas como aberrações ideológicas que fariam a economia global desacelerar. Acontece que está acontecendo!
O clima, a natureza, o natural, se impuseram sobre os nossos descaminhos. Dizem às más línguas que é o sistema imunológico da terra reagindo a praga que somos nós. Argumento bem lógico se considerarmos o mundo como um organismo vivo, no qual somos meros coadjuvantes, apesar de acreditarmos sermos protagonistas.
Um ser vivo microscópico veio nos ensinar que é preciso apresentar outras coisas sobre o que é viver em sociedade, qual o papel do Estado no mundo e como tudo isso tem a ver com pandemia, com o coronavírus. E, sobretudo, como ele pode modificar e está modificando as relações sociais, as relações globais, quando ele deixar suas marcas indeléveis nas famílias que tiveram entes queridos marcados pelo covid-19, na economia global que terá de se reinventar, no “livre mercado” ou sua “mão invisível”, que até pouco tempo, para mim, não passava de mera abstração, mesmo com um milhão de informações disponíveis no mundo virtual.
Estou sendo otimista, porque se as lições do corona não forem estudadas, e já há ensaios de como utilizá-la para manter tudo que ela veio transformar – vide os caminhos dos Estados Unidos, Turquia, China e Hungria – , é possível que outra pandemia, talvez mais violenta, limpe a terra da tragédia que temos sido. Afora as elucubrações sobre o impacto da pandemia no globo, o caso brasileiro é sem igual, pelas peculiaridades da sua atual situação, desencadeada, vide todos os elementos históricos, pela insatisfação de um grupo político que perdeu algo de seu poder, para outro grupo há aproximadamente duas décadas, e acostumado a dominar o país, articularam a retomada do poder. Forma eufêmica de dizer golpe!
O país tem um espécime raro como presidente! Averso a tudo que é científico, ético e humanitário, o dito cujo teima em negar a “importância” da pandemia alegando que algumas mil pessoas podem morrer em prol da economia, o grande baluarte dos reveses políticos de 2016. Essa aversão se traduziu num desprezo pelas pessoas e pela situação precária na qual grande parte dos brasileiros vivem. E daí, a partir daí, o corona está desempenhando um papel fundamental em mostrar às pessoas que surfaram na onda política de 2016 e 2017 quem é o infeliz presidente da república – como se isso fosse um dos mistérios dos planetas – e o que são as relações sociais.
Desde 2014, as pessoas vêm falando que o Partido dos Trabalhadores é isso e aquilo, a partir dos escândalos do mensalão de 2006-2008 e da Lava Jato, alimentando o discurso de ressurreição do inimigo interno: comunista, comedor de criancinha, que doutrina, distribui mamadeira de piroca e kit gay nas escolas. Esses elementos, a despeito de todas as críticas ao Partido dos Trabalhadores, bizarramente foram utilizados pelo famigerado atual presidente – um rei evidentemente nu –, mobilizando através de redes de robôs na internet como elemento propulsor de sua candidatura à presidência. Tudo isso com o apoio do juiz que não fazia política, mas virou ministro, mirando uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, que contribuiu para a prisão política do principal candidato do Partido dos Trabalhadores. E o COVID-19? Onde entra nessa história?
Bem… boa parte da sociedade que andava polarizada entre esquerda e direita, com a balança pendendo severamente para este lado enxergando tudo, com sua lente míope, como uma tentativa de “comunicizar” – licença para criar essa palavra – o país: greves e manifestações passaram a ser vistas como coisa de vagabundo, já que aconteciam durante a semana. “Ninguém” percebeu que esse é um discurso do patrão que sai às manifestações ao domingo para não prejudicar sua rentabilidade. Começaram a dizer que sindicato, que lutou e contribuiu com grandes conquistas para os trabalhadores e trabalhadoras, que trabalhavam até pouco tempo, sob as benesses dessa luta e conquista, era coisa de gente vagabunda e desocupada. Tudo isso em nome do ódio, rancor ou sei lá mais o que, direcionado ao Partido dos Trabalhadores, cujas pesquisas mostram, pelo menos nos dois primeiros mandatos do partido, que foi o melhor governo da história recente do país. E o COVID-19 com isso?