Não adianta se beliscar que é tudo verdade. Pode até hesitar em aceitar a realidade de coisas, pessoas e situações tão inacreditavelmente insanas. Mas, fazer o quê? É o governo que o País tem. E o mais grave: que levou o poder atrás do voto de 57,7 milhões de pessoas. Eleitores que, se pensaram antes de votar, sabe-se lá onde estavam com a cabeça ao praticar esse exercício básico que faz o cérebro justificar sua existência.
Os membros do governo de Bolsonaro refletem os eleitores do "mito". São autossuficientes, agem na cara dura, são cônscios de uma verdade que o mínimo de bom senso rejeita, criam teses mirabolantes que fogem da lógica como o demo foge da cruz. Rezam pela cartilha de filósofos e teólogos os mais estapafúrdios. De Olavo de Carvalho - o bamba do ideário que permeia o bolsonarismo - a grupos religiosos como os de Silas Malafaia e Edir Macedo. Estes, os primeiros propagadores de aberrações como o "kit gay" e a tal da "ideologia de gênero", seja lá essa joça o que for isso.
O governo chegou, essa semana, ao seu décimo dia prenhe de trapalhadas e com jeito de velho, carcomido. Nesse parco período de parco governo, uma abundância de patacoadas. Foram 11 recuos, dezenas de fake news, uma gincana maluca entre os ministros para ver quem expele a teoria mais bizarra. Da condenação do heliocentrismo, decretada por Mister Olavo, à indumentária azul ou rosa ditada pela pastora ministra Damares Alves, a que vê Deus em goiabeira. Da 3ª guerra mundial descoberta pelo comandante da Marinha, Ilques Barbosa Junior, ao despreparo ruidoso de Ernesto Araújo, o esforçado chefe do fã clube de Donald Trump, a quem foi destinado o Ministério das Relações Exteriores.
Nesse período, já foi anunciado início da "despetização" do setor público. Uma promessa do candidato que não fez campanha nem participou de debates, mas pilotou o twitter disparando bravatas a torto e à direito. Anunciar a "boa nova" coube ao ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni que, pinçado do baixo clero do Congresso Nacional, faz sua estreia em cargos de relativa importância. Mas a tese em si vem do onipresente Olavo, que a propaga há muito tempo em seus "cursos" online e palestras no Youtube.
Na área da Justiça, a esperada presença do juiz Sérgio Moro no comando da pasta começa a desnudar algumas realidades. O alardeado combate à corrupção, mote de campanha (de Moro e de Bolsonaro), se enfraqueceu muito com a revelação de casos esquisitos de auxiliares diretos do presidente, como o próprio Lorenzoni e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com seu processo por crime ambiental. Tudo sob o silêncio ensurdecedor de um Moro bem mais discreto que o dos tempos da Lava Jato.
Neste quesito, o caso do motorista-assessor-amigo-pagador Fabrício Queiroz é emblemático para se entender a quem se aplica as leis no novo governo. O próprio Moro já deixou à mostra o seu apreço pelo perdão do acusado como arma de julgamento. Em alguns casos, basta pedir desculpas para se safar. Em outros, como o do próprio Queiroz, nem isso; basta ser amigo do rei.
Em termos planetários, já nos jogamos debaixo da mesa dos Estados Unidos feito cachorro disposto a seguir, fiel e sabujo, o dono. Seguindo uma tendência que assola boa parte do mundo e a América Latina em particular, o Brasil caminha para se tornar um apêndice tropical dos americanos. O que já aconteceu em outros tempos, particularmente, durante o regime militar dos anos 1960/80. Mas, nada é tão ruim que não possa piorar. E agora temos a aliança com o governo de Israel, cujo premier Benjamin Netanyahu veio para a posse de Bolsonaro e passou quatro dias batendo pernas e boca por aqui, fazendo só Deus sabe o quê. O Brasil entra em um jogo perigoso e de consequências imprevisíveis.
No lado pitoresco do governo, a ministra Damares foi a grande revelação e se sobressaiu tanto pela frequência quanto pelo conteúdo de suas afirmações inacreditáveis. Segue a linha do ministro das Relações Exteriores, do ministro da Educação, do ministro da Saúde. Mas supera a todos em criatividade. No governo, nesse segmento, o terreno é fértil. Aí vale tudo, incluindo condenações ao aquecimento global, ao evolucionismo de Darwin, à Revolução francesa como nascedouro do comunismo e por aí vai. No Facebook, já se propagada que, ao final desses quatro imprevisíveis anos, a Terra será plana.
No quesito nepotismo, os primeiros dias do governo que se rotulou de diferente, sério e transparente, foram uma festa. Aí entraram na roda o vice-presidente Hamilton Mourão, com o filho promovido a uma assessoria especial do Banco do Brasil, e o próprio presidente emplacando um "grande amigo" em outra assessoria, agora na Petrobrás, além dos onipresentes filhos do presidente.
E aí vale ressaltar o papel dos três primeiros-filhos. O que eles aprontaram ao longo da campanha foi só uma prévia. Continuam deixando claro que manda quem pode e obedece quem tem juízo. Da carona no Rolls-Royce oficial em plena posse às indicações de amigos e protegidos, a demonstração de poder dos três é cabal, farta e irrefutável. São os donos do pedaço, no novo governo.
Os movimentos sociais, como previsto, começaram a ir para o brejo. Com a migração dos Direitos Humanos e das políticas para as minorias para a pasta da pastora Damares, assim como reforma agrária para a Agricultura, o Ibama para os ruralistas, as piores previsões se mostram ainda distantes do estrago que se prenuncia.
Na Educação, mais um indicado de Olavo de Carvalho, o ministro Ricardo Vélez Rodríguez, começa a jogar o País na Idade Média. Faz isto através de bizarrices como o Escola Sem Partidos que restaura a inquisição e, sob pretexto de retirar no ensino a ideologia a reforça, pela direita. Uma guinada que sataniza Paulo Freire e restaura a moral e os bons costumes como foco da política educacional. As mudanças já anunciadas no Enem - a começar pelo seu novo diretor, da turma de Olavo, evidentemente -, coloca o ensino brasileiro no rumo das trevas.
Se boa parte das personagens aqui citados são até capazes de provocar risos, o responsável pelo centro duro do governo Bolsonaro nada tem de engraçado e atende pelo nome de Paulo Guedes. Cabe ao "Posto Ipiranga" o papel de enquadrar os trabalhadores, os aposentados, os meios de produção e o patrimônio do País à nova ordem nacional. Há quem defenda, inclusive, que ele se beneficia das trapalhadas, recuos e arroubos retóricos dos colegas de ministério para, na surdina, pôr em prática e primavera bolsonarista. Ou o outono do capitão. Já questionado por setores do governo, Guedes, no entanto, é o homem tido como a mola do novo poder.