Dentro de um inferno, algo do paraíso não se perdeu


Qual é o propósito de Deus para a Terra e para a humanidade ...



Leonardo Boff

Se olharmos os cenários mundiais, temos a impressão de que a dimensão de sombra, o impulso de morte e a porção demente tomou conta das mentes e dos corações de muitas pessoas. Particularmente em nosso país, criou-se até o “gabinete do ódio” onde grupos maus maquinam maldades, calúnias, distorções e todo tipo de perversidades contra seus adversários políticos, feitos inimigos que devem ser liquidados senão fisicamente, pelo menos simbolicamente.

Várias janelas do inferno se abriram e suas labaredas incineraram celebridades, alimentaram as fake news e destroçaram porções do Estado Democrático de Direito e em seu lugar introduziram um Estado sem lei e post-democrático e, no caso do Brasil, em sua cabeça, um chefe de Estado demente, cruel e sem compaixão.

Historiadores nos asseguram que há momentos na história de uma nação ou de um povo nos quais o dia-bólico (o que divide) inunda a consciência coletiva. Tenta afogar o sim-bólico (o que une) no intento de fazer regredir toda uma história aos tempos sombrios, já superados pela civilização. Então surgem ideologias de exclusão, mecanismos de ódio, conflitos e genocídios de inteiras etnias. Conhecemos a Shoah, fruto do inferno criado pelo nazifascimo de extermínio em massa de judeus e de outros.

Na América Latina por ocasião da invasão/ocupação dos europeus, ocorreu talvez o maior genocídio da história. No México, em 1519 com a chegada de Hernán Cortez, viviam 22 milhões de aztecas; depois de 70 anos restaram somente 1,2 milhões. Foram católicos anticristãos que perpetraram extermínios em massa. Os gritos das vítimas clamam ao céu contra a “Destruição das “Índias”(Las Casas) e têm o direito de reclamar até o juízo final. Nunca se viu algum ato de reconhecimento deste genocídio por parte das potências colonialistas nem se dispuseram a fazer a mínima compensação aos sobreviventes destes massacres. São demasiados desumanos e arrogantes.

Mas dentro deste inferno dantesco, há algo do paraíso que nunca se perdeu e que constitui a permanente saudade do ser humano: saudade da situação paradisíaca na qual tudo se harmoniza, o ser humano trata humanamente outro ser humano, sente-se confraternizado com a natureza e filho e filha das estrelas, como dizem tantos indígenas. Em tempos maus como o nosso, vale ressuscitar esse sonho que dorme no profundo de nosso ser. Ele nos permite projetar outro tipo de mundo que, para além das diferenças, todos se reconhecem como irmãos e irmãs. E se entre-ajudam.

Narro um fato real que mostra a emergência desse pedaço de paraíso, ainda existente entre nós, lá onde a inimizade e a violência são diárias.

Essa não é uma história inventada mas real, recolhida por um jornalista espanhol do El Pais no dia sete de junho de 2001. Ocorreu no ontem, mas seu espírito vale para o hoje.

Mazen Julani era um farmacêutico palestino de 32 anos, pai de três filhos, que vivia na parte árabe de Jerusalém. No dia 5 de junho de 2001 quando estava tomando café com amigos num bar, foi vítima de um disparo fatal vindo de um colono judeu. Era a vingança contra o grupo palestinense Hamás que, quarenta e cinco minutos antes, havia matado inúmeras pessoas numa discoteca de Tel Aviv mediante um atentado feito por um homem bomba. O projétil entrou pelo pescoço de Mazen e lhe estourou o cérebro. Levado imediatamente para o hospital israelense Hadassa chegou já morto.

Mas eis que a porção adormecida do paraíso em nós foi acordada. O clã dos Julani decidiu aí mesmo nos corredores do hospital, entregar todos os órgãos do filho morto: o coração, o fígado, os rins e o pâncreas para transplantes a doentes judeus. O chefe do clã esclareceu em nome de todos que este gesto não possuía nenhuma conotação política. Era um gesto estritamente humanitário.

Segundo a religião muçulmana, dizia, todos formamos uma única família humana e somos todos iguais, israelenses e palestinos. Não importa em quem os órgãos vão ser transplantados. Essencial é que ajudem a salvar vidas. Por isso, arrematava ele: os órgãos serão destinados aos nossos vizinhos israelenses.

Com efeito, ocorreu um transplante. No israelense Yigal Cohen bate agora um coração palestino, o de Mazen Julani.

A mulher de Mazen teve dificuldades em explicar à filha de quatro anos a morte do pai. Ela apenas lhe dizia que o pai fora viajar para longe e que na volta lhe traria um belo presente.

Aos que estavam próximo, sussurrou com os olhos marejados de lágrimas: daqui a algum tempo eu e meus filhos iremos visitar a Ygal Cohen na parte israelense de Jerusalém. Ele vive com o coração de meu marido e do pai de meus filhos. Será grande consolo para nós, encostar o ouvido ao peito de Ygal e escutar o coração daquele que tanto nos amou e que, de certa forma, ainda está pulsando por nós.

Este gesto generoso demonstra que o paraíso não se perdeu totalmente. No meio de um ambiente altamente tenso e carregado de ódios, surgiu um Jardim do Éden, de vida e de reconciliação. A convicção de que somos todos membros da mesma família humana, alimenta atitudes de perdão e de incondicional solidariedade. No fundo, aqui irrompe o amor que confere sentido à vida e que move, segundo Dante Alignieri da Divina Comédia, o céu e todas as estrelas. E eu diria, também o coração da esposa de Mazen Julani e o nosso.

São tais atitudes que nos fazem crer que o ódio reinante no Brasil e no mundo, as fake news e as difamações não terão futuro. É joio que não será recolhido, como o trigo, no celeiro dos homens nem de Deus. Esse tsunami de ódio e seu promotor maior que desgoverna nosso país, irá descobrir, um dia em que só Deu sabe, as lágrimas, os lamentos e o luto que provocaram em milhares de seus compatriotas que por sua falta de amor e de cuidado para com os afetados pelo Covid-19 perderam a quem tanto amavam. Oxalá neles não esteja totalmente perdida a parcela do Jardim do Éden.


Leonardo Boff é ecoteólogo, escritor e escreveu “O doloroso parto da Mãe Terra: uma nova etapa da Terra e da Humanidade”, a sair pela Vozes em 2020.






Dentro de um inferno, algo do paraíso não se perdeu


Qual é o propósito de Deus para a Terra e para a humanidade ...



Leonardo Boff

Se olharmos os cenários mundiais, temos a impressão de que a dimensão de sombra, o impulso de morte e a porção demente tomou conta das mentes e dos corações de muitas pessoas. Particularmente em nosso país, criou-se até o “gabinete do ódio” onde grupos maus maquinam maldades, calúnias, distorções e todo tipo de perversidades contra seus adversários políticos, feitos inimigos que devem ser liquidados senão fisicamente, pelo menos simbolicamente.

Várias janelas do inferno se abriram e suas labaredas incineraram celebridades, alimentaram as fake news e destroçaram porções do Estado Democrático de Direito e em seu lugar introduziram um Estado sem lei e post-democrático e, no caso do Brasil, em sua cabeça, um chefe de Estado demente, cruel e sem compaixão.

Historiadores nos asseguram que há momentos na história de uma nação ou de um povo nos quais o dia-bólico (o que divide) inunda a consciência coletiva. Tenta afogar o sim-bólico (o que une) no intento de fazer regredir toda uma história aos tempos sombrios, já superados pela civilização. Então surgem ideologias de exclusão, mecanismos de ódio, conflitos e genocídios de inteiras etnias. Conhecemos a Shoah, fruto do inferno criado pelo nazifascimo de extermínio em massa de judeus e de outros.

Na América Latina por ocasião da invasão/ocupação dos europeus, ocorreu talvez o maior genocídio da história. No México, em 1519 com a chegada de Hernán Cortez, viviam 22 milhões de aztecas; depois de 70 anos restaram somente 1,2 milhões. Foram católicos anticristãos que perpetraram extermínios em massa. Os gritos das vítimas clamam ao céu contra a “Destruição das “Índias”(Las Casas) e têm o direito de reclamar até o juízo final. Nunca se viu algum ato de reconhecimento deste genocídio por parte das potências colonialistas nem se dispuseram a fazer a mínima compensação aos sobreviventes destes massacres. São demasiados desumanos e arrogantes.

Mas dentro deste inferno dantesco, há algo do paraíso que nunca se perdeu e que constitui a permanente saudade do ser humano: saudade da situação paradisíaca na qual tudo se harmoniza, o ser humano trata humanamente outro ser humano, sente-se confraternizado com a natureza e filho e filha das estrelas, como dizem tantos indígenas. Em tempos maus como o nosso, vale ressuscitar esse sonho que dorme no profundo de nosso ser. Ele nos permite projetar outro tipo de mundo que, para além das diferenças, todos se reconhecem como irmãos e irmãs. E se entre-ajudam.

Narro um fato real que mostra a emergência desse pedaço de paraíso, ainda existente entre nós, lá onde a inimizade e a violência são diárias.

Essa não é uma história inventada mas real, recolhida por um jornalista espanhol do El Pais no dia sete de junho de 2001. Ocorreu no ontem, mas seu espírito vale para o hoje.

Mazen Julani era um farmacêutico palestino de 32 anos, pai de três filhos, que vivia na parte árabe de Jerusalém. No dia 5 de junho de 2001 quando estava tomando café com amigos num bar, foi vítima de um disparo fatal vindo de um colono judeu. Era a vingança contra o grupo palestinense Hamás que, quarenta e cinco minutos antes, havia matado inúmeras pessoas numa discoteca de Tel Aviv mediante um atentado feito por um homem bomba. O projétil entrou pelo pescoço de Mazen e lhe estourou o cérebro. Levado imediatamente para o hospital israelense Hadassa chegou já morto.

Mas eis que a porção adormecida do paraíso em nós foi acordada. O clã dos Julani decidiu aí mesmo nos corredores do hospital, entregar todos os órgãos do filho morto: o coração, o fígado, os rins e o pâncreas para transplantes a doentes judeus. O chefe do clã esclareceu em nome de todos que este gesto não possuía nenhuma conotação política. Era um gesto estritamente humanitário.

Segundo a religião muçulmana, dizia, todos formamos uma única família humana e somos todos iguais, israelenses e palestinos. Não importa em quem os órgãos vão ser transplantados. Essencial é que ajudem a salvar vidas. Por isso, arrematava ele: os órgãos serão destinados aos nossos vizinhos israelenses.

Com efeito, ocorreu um transplante. No israelense Yigal Cohen bate agora um coração palestino, o de Mazen Julani.

A mulher de Mazen teve dificuldades em explicar à filha de quatro anos a morte do pai. Ela apenas lhe dizia que o pai fora viajar para longe e que na volta lhe traria um belo presente.

Aos que estavam próximo, sussurrou com os olhos marejados de lágrimas: daqui a algum tempo eu e meus filhos iremos visitar a Ygal Cohen na parte israelense de Jerusalém. Ele vive com o coração de meu marido e do pai de meus filhos. Será grande consolo para nós, encostar o ouvido ao peito de Ygal e escutar o coração daquele que tanto nos amou e que, de certa forma, ainda está pulsando por nós.

Este gesto generoso demonstra que o paraíso não se perdeu totalmente. No meio de um ambiente altamente tenso e carregado de ódios, surgiu um Jardim do Éden, de vida e de reconciliação. A convicção de que somos todos membros da mesma família humana, alimenta atitudes de perdão e de incondicional solidariedade. No fundo, aqui irrompe o amor que confere sentido à vida e que move, segundo Dante Alignieri da Divina Comédia, o céu e todas as estrelas. E eu diria, também o coração da esposa de Mazen Julani e o nosso.

São tais atitudes que nos fazem crer que o ódio reinante no Brasil e no mundo, as fake news e as difamações não terão futuro. É joio que não será recolhido, como o trigo, no celeiro dos homens nem de Deus. Esse tsunami de ódio e seu promotor maior que desgoverna nosso país, irá descobrir, um dia em que só Deu sabe, as lágrimas, os lamentos e o luto que provocaram em milhares de seus compatriotas que por sua falta de amor e de cuidado para com os afetados pelo Covid-19 perderam a quem tanto amavam. Oxalá neles não esteja totalmente perdida a parcela do Jardim do Éden.


Leonardo Boff é ecoteólogo, escritor e escreveu “O doloroso parto da Mãe Terra: uma nova etapa da Terra e da Humanidade”, a sair pela Vozes em 2020.






Não há filme mais atual para nós, brasileiros, do que o polonês “ The hater – Rede de ódio ”


Não há filme mais atual para nós, brasileiros, do que o polonês ...


PUBLICADO NO BLOG DO INSTITUTO MOREIRA SALLES

POR JOSÉ GERALDO COUTO

Não pode haver filme mais atual – especialmente para nós, brasileiros – do que o polonês The hater – Rede de ódio, de Jan Komasa, que acaba de chegar à Netflix. O filme é deste ano, e chegou depressa ao streaming porque a pandemia de covid forçou o fechamento dos cinemas no mundo todo logo depois que ele entrou em cartaz na Polônia, em março.

Ao acompanhar algumas semanas ou meses na vida do jovem Tomasz Giemsa (Maciej Musialowski) em Varsóvia, The hater lança luz sobre o mecanismo de funcionamento das redes de ódio e fake news que infestam a internet, tornando quase irrespirável a atmosfera de nossa época. Mais que isso: o filme expõe as articulações desse submundo virtual com a deterioração do debate político e o recrudescimento de tendências como a xenofobia, o racismo, a homofobia e a intolerância religiosa.

Mas não se trata propriamente de um libelo político ou de uma denúncia “exterior”, e sim de uma tentativa de imersão no mundo emocional e psíquico de alguém que está no meio dessa engrenagem, alimentando-a e ao mesmo tempo sendo alimentado por ela. Por isso a narrativa não se descola jamais do ponto de vista de Tomasz, ou Tomek, como é chamado, buscando apreender suas motivações.

E Tomek é, antes de tudo, um ressentido. A primeira cena o mostra num momento de humilhação: flagrado por plágio num trabalho acadêmico, é expulso da faculdade de direito e ainda recebe uma lição de moral dos diretores da escola. Em seguida, ficamos sabendo que ele é um rapaz pobre do interior cujas despesas escolares são bancadas por uma família progressista, cosmopolita e intelectualmente sofisticada. Num jantar na casa bacana da família, ele é tratado com condescendência pelo casal de meia-idade e pela jovem e bela filha, Gabi (Vanessa Aleksander).

Antes de sair da casa, Tomek deixa disfarçadamente seu celular no sofá, no modo de gravação. Pouco depois, volta para recuperá-lo e, a caminho de casa, ouve as frases de escárnio com que seus benfeitores se referiam a ele às suas costas. Antes disso, ao se despedir de Gabi, diz que gostaria de manter contato com ela. A moça diz: “Peça minha amizade no Facebook”. E ele: “Eu já pedi. Há sete anos.” A essa altura, com poucos minutos de filme, já temos os dados básicos: o perfil psicossocial do protagonista, sua desenvoltura com a tecnologia digital e a subcorrente sexual que percorrerá todas as relações.

Do recalque à ação

A condição de humilhado é a base do comportamento de Tomek e da sua leitura da realidade. Inteligente e ambicioso, ele se emprega numa agência que presta serviços de marketing eletrônico. Entre outras coisas, o que se faz ali é derrubar a imagem de firmas concorrentes das empresas dos clientes. Logo a coisa envereda para as campanhas políticas, com perfis falsos de internet feitos para espalhar fake news, destruir reputações, insuflar ódios diversos. Qualquer semelhança com certo gabinete instalado no Planalto Central talvez não seja mera coincidência.

Dos ódios virtuais à violência real é um passo. Para concentrar na trajetória de um único personagem todas as questões que levanta, o diretor Jan Komasa se descuida às vezes da verossimilhança, engendrando situações não muito críveis, mas vá lá: acreditamos no personagem (graças em grande parte à excepcional atuação de Musialowski), e é isso que importa. Desse modo, o filme consegue ser, ao mesmo tempo, um thriller político e um estudo sobre a solidão e o recalque.

Mais do que propriamente o ódio, é o ressentimento que move Tomek e seus parceiros de desatino – como o sinistro Guzek, um bobalhão aficionado por videogames, que mora com a avó doente e tem tara por armamento pesado. Imagine, digamos, um tenente expulso do exército por mau comportamento, ou um deputado do baixo clero desprezado pelos colegas, ridicularizado pela imprensa e ignorado pela intelectualidade. Uma figura assim, com poder na mão, é um perigo incalculável.








Conheça The Hater / Rede de Ódio l Novidade! - YouTube





Não há filme mais atual para nós, brasileiros, do que o polonês “ The hater – Rede de ódio ”


Não há filme mais atual para nós, brasileiros, do que o polonês ...


PUBLICADO NO BLOG DO INSTITUTO MOREIRA SALLES

POR JOSÉ GERALDO COUTO

Não pode haver filme mais atual – especialmente para nós, brasileiros – do que o polonês The hater – Rede de ódio, de Jan Komasa, que acaba de chegar à Netflix. O filme é deste ano, e chegou depressa ao streaming porque a pandemia de covid forçou o fechamento dos cinemas no mundo todo logo depois que ele entrou em cartaz na Polônia, em março.

Ao acompanhar algumas semanas ou meses na vida do jovem Tomasz Giemsa (Maciej Musialowski) em Varsóvia, The hater lança luz sobre o mecanismo de funcionamento das redes de ódio e fake news que infestam a internet, tornando quase irrespirável a atmosfera de nossa época. Mais que isso: o filme expõe as articulações desse submundo virtual com a deterioração do debate político e o recrudescimento de tendências como a xenofobia, o racismo, a homofobia e a intolerância religiosa.

Mas não se trata propriamente de um libelo político ou de uma denúncia “exterior”, e sim de uma tentativa de imersão no mundo emocional e psíquico de alguém que está no meio dessa engrenagem, alimentando-a e ao mesmo tempo sendo alimentado por ela. Por isso a narrativa não se descola jamais do ponto de vista de Tomasz, ou Tomek, como é chamado, buscando apreender suas motivações.

E Tomek é, antes de tudo, um ressentido. A primeira cena o mostra num momento de humilhação: flagrado por plágio num trabalho acadêmico, é expulso da faculdade de direito e ainda recebe uma lição de moral dos diretores da escola. Em seguida, ficamos sabendo que ele é um rapaz pobre do interior cujas despesas escolares são bancadas por uma família progressista, cosmopolita e intelectualmente sofisticada. Num jantar na casa bacana da família, ele é tratado com condescendência pelo casal de meia-idade e pela jovem e bela filha, Gabi (Vanessa Aleksander).

Antes de sair da casa, Tomek deixa disfarçadamente seu celular no sofá, no modo de gravação. Pouco depois, volta para recuperá-lo e, a caminho de casa, ouve as frases de escárnio com que seus benfeitores se referiam a ele às suas costas. Antes disso, ao se despedir de Gabi, diz que gostaria de manter contato com ela. A moça diz: “Peça minha amizade no Facebook”. E ele: “Eu já pedi. Há sete anos.” A essa altura, com poucos minutos de filme, já temos os dados básicos: o perfil psicossocial do protagonista, sua desenvoltura com a tecnologia digital e a subcorrente sexual que percorrerá todas as relações.

Do recalque à ação

A condição de humilhado é a base do comportamento de Tomek e da sua leitura da realidade. Inteligente e ambicioso, ele se emprega numa agência que presta serviços de marketing eletrônico. Entre outras coisas, o que se faz ali é derrubar a imagem de firmas concorrentes das empresas dos clientes. Logo a coisa envereda para as campanhas políticas, com perfis falsos de internet feitos para espalhar fake news, destruir reputações, insuflar ódios diversos. Qualquer semelhança com certo gabinete instalado no Planalto Central talvez não seja mera coincidência.

Dos ódios virtuais à violência real é um passo. Para concentrar na trajetória de um único personagem todas as questões que levanta, o diretor Jan Komasa se descuida às vezes da verossimilhança, engendrando situações não muito críveis, mas vá lá: acreditamos no personagem (graças em grande parte à excepcional atuação de Musialowski), e é isso que importa. Desse modo, o filme consegue ser, ao mesmo tempo, um thriller político e um estudo sobre a solidão e o recalque.

Mais do que propriamente o ódio, é o ressentimento que move Tomek e seus parceiros de desatino – como o sinistro Guzek, um bobalhão aficionado por videogames, que mora com a avó doente e tem tara por armamento pesado. Imagine, digamos, um tenente expulso do exército por mau comportamento, ou um deputado do baixo clero desprezado pelos colegas, ridicularizado pela imprensa e ignorado pela intelectualidade. Uma figura assim, com poder na mão, é um perigo incalculável.








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