Alberto Silva
Mente sã, corpo são. É possível falar de saúde mental e equilíbrio pessoal em tempos de covid 19? Parece ser difícil afastar o espectro do pânico quando o inimigo invisível se instaura entre nós, ameaçando arrancar todas as perspectivas.
As pessoas vão à escola, ao trabalho, à universidade. Consultam-se nos hospitais, fazem compras nos shoppings, bebem nos bares, comem nos restaurantes, divertem-se nos teatros e cinemas. Em diferentes espaços, constituem-se as arenas de sociabilidade, os terrenos onde se exercitam as liberdades de ir e vir e de consumo. O dia-a-dia e a rotina fazem-se dos encontros, das trocas, dos fluxos e contatos.
Os indivíduos são eminentemente interdependentes, se constituem através da linguagem travada com o “outro”. Portanto, são seres das multidões, pois é nelas que criam relações e constituem a sua própria subjetividade. Essas lições básicas da sociologia contemporânea não cessam de ter espaço, ainda mais em um momento em que governos do mundo inteiro realizam um experimento em larga escala de confinamento de populações inteiras. O Leviatã mostra aqui todo o seu poder, em uma tentativa de frear a escalada de casos registrados de morte e contaminação por um vírus até pouco tempo misterioso.
No filme Teorema (1968) de Pier Paolo Pasolini, um clássico do cinema italiano e uma de minhas referências fundamentais, um estranho visitante leva uma família da alta sociedade a mudanças fundamentais. O rapaz, além de seduzir afetivamente a todos os membros do clã, ainda os leva a loucura. Também hoje, um vírus estranho nos visita a partir da China, impressionando por suas capacidades destrutivas e produzindo tensão, ansiedade, incertezas e vertigem.
Nessa conjuntura, o mundo de repente parou, forçando uma mudança radical nas nossas relações. Os amigos ou vizinhos queridos tornaram-se pessoas distantes; passou-se a evitar o contato com parentes, ainda mais se forem idosos ou crianças; dentro de sua própria casa, alguns metros são centrais para a precaução.
São consequências que reverberam nos micro espaços e ao mesmo tempo geram temor e paranoia: não se sabe até quando ficaremos nesse cenário de instabilidades, de paradas. Nele, muitos são os que perdem o emprego e as possibilidades de garantir o sustento para si e os mais próximos. Nele, carecemos de solidez em nossos planejamentos. A sustentação dos horizontes faz-se fluida e gelatinosa. Diante dele, a vontade contemporânea de tudo ser e tudo agarrar mostra-se como na verdade é: vã, inútil, pois nossos esforços conduzem ao ilusionismo.
O marketing corrente do sujeito do desempenho está agora frente a frente com a interrupção mesma da dinâmica do capitalismo. É necessário parar, com todos os custos que disso decorrer, ou senão adoeceremos e quiçá morreremos. Os que podem dão sequência a dinâmica da produtividade das suas casas, graças à tecnologia que hoje permite a extensão da linha de produção para a esfera do “privado” (sic). Outros continuam nos serviços essenciais, pois os nichos relacionados à saúde e ao abastecimento não podem parar.
Mais do que nunca, a intelectualidade e o pensamento crítico não podem fazer desses tempos férias impostas coercitivamente. Há material vivo para a reflexão, a inquietação e a perturbação. E há de se ter cuidado com o verbo “perturbar”. Se o mundo tal como conhecemos desaba, é natural que nem toda a reação seja de tranquilidade ou serenidade. Cresce a angústia com a letargia das pesquisas científicas e a morosidade das administrações. Deteriora-se o estado de saúde mental.
Correm em sites, vídeos, livros e informativos, algumas recomendações para proteger o seu “estado de espírito” durante a crise mundial vivenciada: não ler demasiadamente as informações correntes; cultivar algum hobbie (curso online, desenhar, assistir um filme, ler um livro etc.); e não deixar de fazer exercícios físicos, ainda que em casa. No fundo, o que se indicam são paliativos: modos de não se abalar suficientemente com o choque e a tragédia do horror emergente.
Busquemos o equilíbrio, afinal não somos como Deus, onipotentes. Cabe a nós cuidar de nosso terreno, não manter preocupações infinitas e simultâneas ao mesmo tempo. Tristemente, a realidade é o quadro em que dança a morte, pintado em pandemias passadas. Dificilmente se contém isso com uma dúzia de mãos leigas. Há especialistas, dia e noite, a decifrar o enigma. Em uma analogia com a história da arte, do jardim das delícias de Bosch (o cotidiano sem grandes intempéries) passou-se ao afresco em que os cidadãos europeus enterram os mortos pela peste negra.
Hoje, quando a ciência vive a sua batalha final contra o negacionismo, o casulo no qual muitos de nós fomos metidos repentinamente pode ser a chance de uma metamorfose, de um reencontro ou transformação. Isso é verdade. Mas para a maioria não deixa de ser agonia, aflição. Para quem mostra os sintomas da praga, desespero. Mas voltar-se a si, na tragédia grega (ops… italiana ou brasileira) dos nossos tempos, é da inevitabilidade da sanidade.
Somos tão finitos e passageiros quanto o mundo é perene até decisão contrária. A consciência de que não detemos sequer o controle de nossas próprias vidas vai de encontro à bulimia informacional. Como indivíduos, continuamos suscetíveis a cumprirmos o papel de átomos isolados, de números de estatísticas a serem divulgadas nos telejornais. O “eu”, mesmo provido de grande quantidade de recursos, não se mostra tão importante quanto pensa que é. A ilusão de grandeza é isso: ilusão, como o são também o passado e o futuro pelos quais deitamos em pensamentos e memórias. Procurar ajuda e ser firme ao mesmo tempo, são algumas táticas nas quais podemos nos fiar para resguardar algum tipo de salubridade no interior de nossas cabeças a essa altura.
A globalização que permitiu a circulação de pessoas, bens e capitais como jamais se presenciou na história da humanidade, permite agora a difusão rápida e acelerada de um mal, a partir de: aviões, navios, portos e aeroportos. O ideal do cidadão viajante e cosmopolita e das fronteiras livres e abertas está em cheque. Mais do que nunca, temos um flanco para o fortalecimento da xenofobia e do nacionalismo acrítico, embora a problemática global dependa de esforços globais em sua resolução.
A alteridade ainda é fundamental, mesmo para quem está sozinho em casa. As experiências bem-sucedidas lá fora devem ser adotadas cá dentro. O que ocorrer no alto dos poderes terá reflexos diretos na salvação de muitos (embora não seja possível evitar todas as mortes). E das saídas racionais e informadas haverá um sopro de esperança e sanidade nessa loucura que se abateu e obrigou a muitos de nós cuidados extremos.
A gripe que se abate sobre a humanidade nesse assombroso 2020 tem sido comparada a gripe espanhola (a cuja imagem principal do texto se refere) de meados do século XX que matou aproximadamente 100 milhões de pessoas. Entretanto, no oposto daquele tempo, agora dispomos de muito mais equipamentos hospitalares, remédios, inovações e profissionais qualificados do que naquela época para lidar com a suposta “histeria”. Como declara a OMS na data de 25/03/2020 cabe às lideranças políticas programarem as medidas que minimizem o caos na saúde pública.
Também no plano da psicologia estamos mais armados para lidar com os danos do sofrimento psíquico que já se faz presente na suposta “normalidade” de nossas vidas e se acentua nos últimos dias. Não dispomos de políticas públicas consistentes quanto a isso, mas já há pronto-atendimentos, inclusive por telefone, em parte significativa das cidades brasileiras para ajudar a preservar a vida de pacientes acometidos por problemas emocionais. São serviços que contam com voluntários e profissionais. O cuidado de si, seja pela verbalização da sua própria narrativa seja por medicamentos, nunca foi tão importante. Na pandemia do novo coronavírus, não precisamos lidar com o cansaço mental sozinhos. A grande luta de nossa geração será cumprir o dever de retirar intactos os nossos pulmões e os nossos cérebros.