O paralelo entre Dilma e o filme de Capra é surpreendente. Espero mesmo que ela o assista e se inspire com essa obra-prima.
André Calixtre
Aproxima-se a semana decisiva do golpe. A democracia está no colo de 81 senadores e senadoras que, transformados em tribunal do impeachment sob presidência do análogo Supremo Federal, julgarão a acusação sem fundamento jurídico de crime de responsabilidade, introduzindo, mais uma vez, o perigoso voto de desconfiança parlamentarista em pleno regime presidencialista. Jogarão na vala não somente os 54 milhões de votos que reelegeram a primeira mulher presidenta do Brasil, mas todos os trinta anos de árduo processo histórico de redemocratização e construção de um Estado de Bem-Estar Social voltado para reduzir o inferno que as elites produzem no cotidiano dos trabalhadores, dos pobres, dos pretos, das mulheres e das minorias. No centro do conflito, uma mulher honesta vai enfrentar de cabeça e corpo erguidos a trupe de senadores que, muitos ao traí-la, já copulavam com os esquemas voltados para a retirada de um presidente eleito para executar um plano de governo indefensável nas urnas. No subterrâneo das negociações parlamentares, passam rios de interesses, e suas correntezas permanecerão escondidas aos olhos do cidadão comum.
Tudo se parece com um filme de Frank Capra, de 1939, chamado “Mr Smith goes to Washington”, cuja tradução brasileira é o inusitado título “A mulher faz o homem”. O título brasileiro não cai bem à proposta principal do filme, mas casa perfeito com o momento atual no Brasil. Capra é conhecido por suas obras primas de otimismo e crença na vitória da bondade dos homens livres, e nesse filme discute um valor fundamental à formação dos Estados Unidos: o Caráter intrínseco da democracia e sua capacidade de resistir, com o valor dos homens comuns, à república corrupta e à tirania dos poderosos. Capra é o principal mago da ideologia liberal americana no cinema, e mostra com maestria, no filme, a batalha de Jefferson Smith, chefe de escoteiros de um pequeno estado norte-americano, indicado pelo Governador ao Senado para substituir um senador que havia morrido. O Governador queria nomear um fantoche, mas, por um motivo absolutamente prosaico, após uma conversa de jantar com os filhos que conheciam os feitos de Smith, e sob pressão do partido para não nomear um político inexpressivo, resolve dar uma chance ao escoteiro.
Em Washington, Smith reencontra o amigo conterrâneo de longa data de seu pai, o antigo Senador Joe Paine, e percebe que sua indicação nada passou de um reforço a um esquema corrupto para a construção de uma barragem no parque nacional em que atua o grupo de escoteiros. O esquema era financiado pelo empresário Jim Taylor, que mantinha no bolso parte expressiva do senado, o governador de seu estado, e inclusive o amigo Paine. Ao se recusar participar da infâmia, Smith é retaliado com toda a força disponível pelo empresário Taylor, que usa o Sen. Paine para acusar Smith de corrupção e promove um bloqueio midiático na região eleitoral do senador para impedir qualquer visão distinta dos fatos. Paralelamente, conclui-se processo sumário de cassação do mandato de Smith, liderado pelo próprio Sen. Paine, restando apenas a aprovação do pleno.
Impedido de defender-se, e traído pelo maior amigo de seu pai, Sen. Smith é aconselhado pela assessora legislativa Clarisse Saunders (a mulher que faz o homem), apaixonados, a defender-se diretamente na tribuna do Senado, pelo tempo que for necessário. A reação imediata do Senado foi chamar uma obstrução de quorum, a qual Clarisse consegue reverter obrigando o Vice-presidente da República, que nos Estados Unidos preside o Senado, a convocar todos os senadores para ouvir a defesa de Smith. Embasado em um dispositivo regimental que permite a fala de um senador a tribuna por tempo indeterminado, Smith profere um discurso de mais de 24 horas de duração, retardando sua cassação enquanto seus pequenos aliados escoteiros tentam romper o bloqueio da opinião pública promovido pelo poderoso Taylor. No entanto, as mobilizações fracassam e, após um dia e meio de discurso ininterrupto, Smith, exausto de sua defesa, desmaia em plenário, encerrando sua fala regimental. O crime teria sido perfeito, não fosse o colapso mental que a atitude de Smith provocou no velho Sen. Paine que, ao ver o desmaio do amigo, tentou suicídio na antessala da câmara alta e, não conseguindo, confessou para todos os parlamentares, bestializados, os verdadeiros esquemas que o empresário Taylor mantinha na casa, inocentando Smith e salvando a democracia da corrupção dos homens.
No Brasil, o golpe aproxima-se do impeachment a cada passo novo dado, todos que nele tocam se contaminam radioativamente. A cena idílica de uma luta do bem contra o mal se traduz na disposição da presidenta de enfrentar as hienas cara a cara. Pena que não vivemos um filme de Capra, mas quisera eu sonhar com uma virada epopeica em que, envergonhados dos reais interesses que os moviam, senadores antes leais a Dilma arrependessem de suas traquinagens com a democracia e restabelecessem a ordem e a lei dos cidadãos comuns. Porém, a confluência de uma legislatura moribunda - cujos parâmetros de poder modificaram-se radicalmente com a proibição do financiamento empresarial de campanha, porém seus mandatos permanecerão intactos até 2018 - com a agenda perdida de um punhado de Jim Taylor permitiu um golpe institucional para apear do poder o controle do povo sobre o destino da nação que dificilmente será revertido.
O paralelo entre Dilma e o filme de Capra é surpreendente. Espero mesmo que essa mensagem possa chegar à presidenta e, nas suas noites de preparação para o dia 29, tenha um tempo para assistir e se inspirar com essa obra-prima, se é que ela já não o tenha feito. Dois detalhes, no entanto, divergem profundamente a situação atual da película: Dilma não foi traída por quem a indicou ao posto máximo da nação; e, no filme, o Vice-Presidente, ao presidir o Senado, exerceu um papel fundamental ao assegurar o direito de tribuna do Sen Smith e assessorar gentilmente o processo de emergência da verdade pelo mecanismo infalível da democracia, e não derrubá-la a golpes de marretas e porretes, buscando exercer um poder que, legitimamente, nunca lhe pertenceria.
PS: quem quiser assistir ao filme, está em cartaz no Netflix. Agradeço à cinéfila e companheira Daniela Freddo pela maravilhosa indicação.
Postado em Carta Maior em 23/08/2016