Tudo isto iniciado pela incapacidade do judiciário de conter-se dentro dos ditames daquela que lhe deveria ser fronteira: a constituição. Os saracoteios inconstitucionais da Operação Lava a Jato já estavam evidentes até para observadores internacionais. Alguns juízes brasileiros (e notadamente Moro) pensam-se Pretores romanos.
Moro parece sentir-se à vontade sendo nominado como “chefe” de uma “força-tarefa” investigativa composta por promotores e policiais no Paraná.
Desde que o Senado Romano (ainda antes de Cristo) percebeu pela prática que investigar e julgar eram atividades incompatíveis ontologicamente, que o direito moderno (e mais ainda o contemporâneo) invoca a impessoalidade, a legalidade e a defesa intransigente dos direitos fundamentais como condição sine qua non da legitimidade da própria justiça.
Há muito que “justiça” não é mais entendida como uma condição objetiva ou um objetivo em si plenamente alcançável. Apesar de toda tentativa retórica de fortalecimento do processo de positivação do direito, a subjetividade é claramente característica ontológica inescapável de qualquer trabalho judicial.
Assim, a defesa intransigente das liberdades individuais, a paridade de armas entre defesa e acusação e as garantias do juiz natural e do duplo grau de jurisdição concorrem integralmente para a construção deste ente sócio-hermenêutico chamado “processo”.
Um processo corretamente conduzido entrega como resultado (ao fim, portanto) um veredito de culpabilidade ou inocência sobre o qual não se pode dizer que é perfeito, mas perfeitamente humano e socialmente constituído. É o melhor que podemos fazer pela ideia-guia de “justiça”.
A condução correta do processo cabe ao Juiz que, em respeitando os princípios fundamentais de impessoalidade e naturalidade ainda precisa julgar-se apto e neutro o suficiente para presidir a causa.
Pré-julgamentos, portanto, são a demonstração da impossibilidade – por quaisquer meios – de se atingir o ponto ótimo da prestação jurisdicional: uma sentença empiricamente embasada, tecnicamente fundamentada e distante o suficiente dos polos da ação para que seja socialmente aceita. O direito não é um campo apolítico e sem qualquer contato com o tecido social como parecem entender alguns juízes-pretores brasileiros.
A partir daqui é possível ver como o juiz Moro deflagrou a crise em que vivemos.
Por todas as ligações familiares, históricas, profissionais, políticas e mesmo matrimoniais, Moro deveria ter-se dado por impedido para o julgamento da Lava a Jato. O tema é um tabu mesmo entre juízes, uma vez que a simples invocação de laços sociais não tem o condão a priori de contaminar a consciência do julgador. Esta avaliação, entretanto, pode muito bem ser depreendida a posteriori em função do trabalho de Moro.
Somando-se a isto, Moro claramente ultrapassa as fronteiras da ação de um juiz ao valer-se da espetacularização midiática para dar significação às suas ações. Justiça que precisa de significação externa a si não é justiça e sim simulacro torpe.
Ao receber prêmios midiáticos por ações ainda em andamento, ao “capitanear” investigações e agir de ofício (como no caso do despacho de “condução coercitiva” de Lula) Moro deixa escapar, e não poderia ser diferente a qualquer humano, toda sua contaminação político-ideológica. Ao transformar a exceção em regra para um nicho de réus apenas o juiz perde totalmente a sua legitimidade.
São inúmeras e indiscutivelmente capacitadas as vozes que questionavam as prisões-torturas (uma nova categoria criada por Moro) de réus (possíveis “colaboradores”) e suas esposas. As inúmeras negativas de acesso aos autos, as transcrições inexistentes apenas quando em favor das defesas e tantas outras arbitrariedades que devem ser apenas conhecidas pelos profissionais que lutam contra este desvario apenas demonstram que Moro e seus comandados estão dispostos a serem ilegais para condenar a ilegalidade alheia.
Na última sexta feira, entretanto, o desrespeito ao artigo 5º da constituição, na vil tentativa jurídica de atrair competência para si (em disputa com a justiça de SP) chegou ao limite. Não se trata aqui de diminuir as figuras dos inocentes (pela aplicação soberana do “antiquado” princípio da inocência) que estão presos sem qualquer indicação sobre a duração da prisão e antes de decisão final transitada em julgado.
A ação contra Lula é mais violenta, contudo, porque encerra uma função simbólica. Simbolismo que vem sendo a única entrega efetiva que a Lava a Jato faz para a sociedade. Efetiva e de validade questionável.
Desde ministro do STF, até professores doutores em direito, passando por ex-ministros da Justiça dos partidos de oposição em uníssono declararam a ilegalidade e a inconstitucionalidade das ações do pretor Moro.
Associações de classe dos juízes federais lançaram manifestos de apoio às ilegalidades numa demonstração solar de que o judiciário brasileiro há muito se descolou do tecido social que se arroga o direito de “julgar”.
Isto seria apenas um enorme problema interno ao judiciário que se somaria ao corporativismo atávico, à falta de accountability e à falta de controle efetivo sobre a magistratura, especialmente após o enfraquecimento quase total do CNJ. As ações de Moro, entretanto, lançaram o país num caos institucional porque seu açodamento atingiu níveis tão evidentes que mesmo a parcela inculta e mais pobre da população percebeu que os critérios da vara paranaense são sinuosos demais.
Os termos “indícios”, “ampla defesa”, “provas”, “coerção”, “sigilo” tem diferentes interpretações dentro dos processos da Lava a Jato, dependendo dos réus em questão. Há pouco mais de 15 dias foi arquivada uma segunda denúncia sobre Aécio Neves. Ninguém ficou sabendo que ela sequer existia.
Isto implica dizer que ou a Polícia Federal não investigou Aécio ou o fez de forma profissional e republicana. Mantendo o sigilo e defendendo os direitos do investigado. Se a Polícia Federal é capaz de fazer isto por Aécio porque é incapaz de fazê-lo para Lula? Ou é incompetente e precisa ser reformada ou é vil e politizada e também, neste caso, precisa ser reformada.
Da base investigatória até a condução processual da Lava a Jato, absolutamente tudo está manchado.
Isto não implica dizer que os réus são inocentes. Tampouco isto implica em defender qualquer forma de exceção da possibilidade de investigação e punição para A ou B. Implica tão somente em reconhecer que todo o trabalho do juiz Moro (que já causou um prejuízo estimado ao país de 140 bilhões de reais investigando corrupção da ordem de 20 bilhões segundo os promotores) é falho, frágil, inconsistente e somente fica hígida de fronte aos holofotes da mídia e sua sanha de punição seletiva.
Por muito menos outras operações da PF (que tinham réus menos populares) foram totalmente invalidadas.
Moro lançou o país à beira de um conflito sócio-político de proporções sérias. Desnudou os problemas institucionais do judiciário brasileiro e a impossibilidade de continuarmos nesta configuração de “justiça”, e tudo isto movido por um sentimento de “obrigação patriótica” digna das piores páginas de Carl Schmitt.
E, desde que não há nada que se possa fazer contra juízes ineptos, incapazes, desonestos, criminosos, perdulários ou qualquer outro, se a crise que Moro deflagra não se mostrar forte o suficiente para provocar ruptura institucional, temos certeza que em mais alguns dias o fará, haja vista a inimputabilidade, a inamovibilidade e completa transcendência social dos juízes brasileiros. Juízes que, entretanto, vergam às forças da vaidade, da ideologia e do poder financeiro, como aliás, qualquer ser humano.
Fernando Horta, professor que trabalhou desde as séries iniciais até a universidade, doutorando História da Relações Internacionais UNB.
Postado no Sul 21 em 07/03/2016