Saul Leblon
A lógica que produz um ambiente fascista nem sempre é feita de inciativas coordenadas por um diretório central, mas de arranques impunes, que amaciam a rota para esse segundo momento.
Ordenadas pela dinâmica cega de interesses graúdos, ações aparentemente dispersas conduzirão a avalanche pulverizada até o seu arremate totalitário.
O contrapiso do caminho consiste, entre outras coisas, em raspar do imaginário social suas referências reais e simbólicas, numa espiral erosiva de desamparo que desidrata o futuro, desqualifica o passado e leva à exasperação do presente.
Sedimenta-se aí o território dos salvadores da pátria.
O surgimento de candidaturas municipais atreladas ao bordão da ‘segurança’ nas eleições de 2016, caso da do apresentador Datena, cogitada em São Paulo, prefigura o ovo que choca nessa incubadora de boas e más intenções.
Na história de uma sociedade, as intenções são soterradas pela articulação objetiva dos fatos que as precedem e as sucedem.
Quem não entende isso presta-se ao papel de um joguete de suas próprias ações.
Nunca esquecer: a ‘Operação Mãos Limpas’, em 1992, figurava como o golpe definitivo no combate à endogamia entre o dinheiro privado e a podridão da política italiana.
Lá como cá o núcleo dos ilícitos começava nas distorções de financiamento do sistema eleitoral.
E terminava sabe-se onde.
A devassa ocupou dois anos e expediu 2.993 mandados de prisão; 6.059 figurões tiveram as contas e patrimônios dissecados -- entre eles, 872 empresários , 438 parlamentares, quatro ex-primeiros-ministros.
Não terminou em pizza.
Cerca de 1.300 réus foram condenados; apenas 150 absolvidos.
Suicídios, assassinatos, fugas e humilhações pontuaram a faxina.
O furacão jurídico destruiu a Primeira República Italiana.
Cinco grandes partidos, incluindo-se a Democracia Cristã, o Partido Socialista e o Partido Comunista, o maior e mais estruturado do ocidente, viraram poeira da história.
Na Itália não se viu a seletividade partidária, quase obscena, que goteja nas ações dos promotores do Paraná.
O espaço que se abriu, porém, não encontrou forças mobilizadas, tampouco projetos organizados, nem propostas críveis para catalisar a revolta e a desilusão da sociedade.
Vale repetir o que já se observou nesse espaço: tragicamente, o que se pretendia combater, ganhou impulso avassalador.
A independência entre o poder político e o poder econômico derreteu completamente.
Um país desprovido de partidos fortes, desiludido de suas lideranças, virou refém direto do dinheiro grosso, na figura de um de seus detentores caricaturais, Il Cavaliere.
Silvio Berlusconi, um produto despudoramente representativo do vazio chocado em uma sociedade atomizada, feita em estilhaços políticos, emergiu solitariamente como il capo, ancorado em um sistema de comunicação pautado por valores sabidos.
O desfecho da Mãos Limpas foi o horror na forma de uma liderança bufa, que substituiu a hegemonia de Gramsci pela indigência ubíqua de sua própria rede de televisão.
Não, não foi uma ressaca passageira.
Foi o desdobramento de uma sangria estrutural da política sacrificada na unidimensional lógica da faxina policial.
Silvio Berlusconi e sua fortuna de US$ 6 bilhões ficaram nove anos no poder.
A Itália de apequenou em todas as frentes; hoje patina à beira de um poliprecipício, candidata a se tornar a próxima Grécia.
O enredo brasileiro agrega novidades a esse horizonte.
As características rebaixadas e despudoradamente contaminadas de partidarismo dos condutores da ‘faxina’ local, amplificam os riscos e os seus desdobramentos.