Aos que são Charlie Hebdo



Alguma vez posso ter sido como Charlie Hebdo.

No afã de ser divertido posso ter magoado alguém.

No afã de provocar o riso, posso ter reafirmado preconceitos.

E como o riso podia se perder,

eu posso ter sido cruel com alguém para que outros rissem.

Mas aprendi que isso de nada valia.

Que o riso provocado pela desgraça,

pelo preconceito,

pela discriminação e pelo ódio,

não era o riso que ilumina as faces,

mas o esgar de ansiedade

das multidões que participam

de apedrejamentos, linchamentos e execuções.

Não quero buscar esse riso

e não quero estar nessas multidões...

E continuarei lutando para que isso não aconteça.

Para que o preconceito, o ódio, a intolerância e a discriminação

não seja vista como o direito inalienável do humor.

Não há humor quando o riso é fruto da exposição ou desgraça alheia.

Portanto, eu espero,

que ao lutar contra a intolerância

e condenar os assassinatos brutais,

você não se transforme em um deles.

Porque existe terroristas de armas e terroristas de palavras,

e todo terror é condenável.


Ronald Pinto 


Postado em seu Facebook em 10/01/2015

A imagem que ilustra o texto foi inserida por mim
Rosa Maria (editora deste Blog)


Eu não sou Charlie


Not in my name

Lelê Teles: JE NE SUIS PAS CHARLIE

Maria Frô
“Não consigo entender o terrorismo que ceifou a vida de jornalistas da revista francesa Charlie Hebdo. Não consigo entender o racismo e desrespeito religioso da revista francesa Charlie Hebdo. Não consigo” Marcus Guellwaar Adún Gonçalves
Criticamos o humor ofensivo do CQC, Zorra Total, Praça é Nossa, Casseta & Planeta e outros quando seu alvo são grupos oprimidos e quando o preconceito explícito, travestido de humor, é justificado como liberdade de expressão. 

Por que não podemos criticar caricaturas racistas, homofóbicas, sexistas produzidas pela esquerda? A crítica a isso obviamente não é licença para qualquer justifica ao ato brutal do atentado fundamentalista contra 12 vidas ceifadas na redação do periódico francês. 

O humor ofensivo das páginas de Charlie Hebdo, por vezes, ultrapassou a islamofobia e chegou à caricatura racista.









Na charge, no traseiro de Dieudonné tem uma Quenelle* (tradicional prato francês, que lembra uma salsicha branca) introduzida. 

Charb aproveita-se dos termos homônimos para construir a piada com conotação homofóbica e a meu ver com um toque racista, pois ao retratar o comediante com a bunda para cima e com uma Quenelle exagerada que ao mesmo tempo parece brotar de seu traseiro, o chargista transforma o rolinho num rabo, contribuindo para animalizar a personagem retratada.

O "humor" cada vez mais ácido de Dieudonné atacando o sionismo e resvalando no anti-semitismo já sofreu várias sanções na França, o humor da Charlie Hebdo atacando o islamismo não sofreu sanções do Estado francês. 
O comediante Dieudonné M’bala M’bala é o criador do gesto Quenelle (o braço direito reto apontado para o chão), que os franceses de origem judia afirmam ser anti-semita e apelidaram de “saudação nazista reversa e os apoiadores de Dieudonné afirmam ser apenas um gesto vulgar de oposição a instituições francesas.




Aqui a "homenagem" do periódico a Michael Jackson quando de sua morte. 

É preconceito respondido com preconceito. Mas as autoridades francesas usam dois pesos e duas medidas em relação aos atores produtores dos preconceitos e as vítimas deles. Sonho com um dia que ao menos a esquerda consiga fazer algo diferente. 

Conheça a campanha de muçulmanos espalhados pelo mundo, esta sim, a meus olhos fazem todo o sentido: NOT IN MY NAME, que ilustra a capa deste post. 

Fiquem com o texto de Lelê Teles. 

*Agradeço a Natalie Kosloff que me esclareceu sobre o objeto não identificado (Quenelle) na charge de Charb sobre Dieudonné M’bala M’bala. 


Je ne suis pas Charlie


Lelê Teles

É lamentável que quatro excelentes cartunistas tenham sido mortos de forma brutal. Lamento também a morte das outras oito pessoas, duas delas policiais, um deles muçulmano. 



Lamento também que uma importante publicação de esquerda, histórica, tenha se prestado a um exercício vulgar de ofender, obsessivamente, líderes religiosos; porque, na verdade, só conseguem com isso ofender as pessoas que professam essas religiões. 

Alá tá lá, na dele. 

Charlie Hebdo, demonstrava uma certa obsessão pelo islã, as charges, o profeta de quatro, insinuando que ia comer um camelo… eram vulgares e sem propósito. 

Até aí, morreu neves. 

Mas o que de fato se pretendia com isso? 

Hebdo sabia quem e o quê queria provocar com sua obstinada insistência. 

Como bem disse o Therry Meyssan, “o Charlie Hebdo s’était spécialisé dans des provocations anti-musulmanes et la plupart des musulmans de France en ont été directement ou indirectement victimes”. [Tradução livre: Charlie Hebdo havia se especializado em provocação anti-muçulmana e a maioria dos muçulmanos na França teria sido direta ou indiretamente vítimas.”] 

Hebdo estava a testar se os fundamentalistas eram de araque? 

O fundamentalismo islâmico, esse covarde e extremamente radical, é sempre bom lembrar, é um produto do imperialismo ocidental. Os Estados Unidos alimentaram sujeitos lunáticos, inescrupulosos e sedentos por poder para combater o grande satã, o comunismo. 

Bin Laden nasceu daí, e disso todo mundo sabe. 

Enquanto cresciam as milícias sanguinárias, protegidas por uma falsa camada religiosa, espancando estudantes, fuzilando professores laicos, colocando as mulheres “na linha”, o Ocidente aplaudia. 

É lá, é com eles, é o efeito colateral. Melhor que termos os comunistas sentados sobre as maiores reservas de petróleo e gás do mundo. 

É bom frisar que os fundamentalistas, recuso-me a chamá-los de islâmicos, não fabricam armas e que as nações “santinhas” estão a encher as burras com todo esse terror. 

Lembram das terríveis imagens de Gaddaffi, assassinado brutalmente por sicários ensandecidos? Limparam a área pra turma da toca ninja. 


Hebdo, desculpem-me a franqueza, mas era um inocente útil. Seu jornal, que tinha os maiores chargistas do mundo, estava perdendo leitores, porque sua leitura obstinada, fundamentalista, estava cansativa. 


Ir contra o profeta Maomé era pedir briga, não com os muçulmanos, mas com os fanáticos. 


Dizer que o crime em França atenta contra a liberdade de expressão é de um lugar comum risível. 

O fundamento dos fundamentalistas é cercear a liberdade de expressão. E eles são contra a liberdade de expressão de todos aqueles que não pensam como eles, sobretudo muçulmanos. 

Descobriram isso agora quando morreram não-muçulmanos? 

Agora as trapalhadas, obsessivas, do jornal satírico fará com que a Europa se volte contra os muçulmanos, que a rigor nada têm a ver com esses sicários. 

Para os muçulmanos, as charges Charlie Hebdo são apenas ofensas reprováveis e desrespeito, como o foi Je Vous Salue Marie para os cristãos. 

Mas Hebdo sabia que provocava a ira dos sicários e parecia gostar disso. Para os islamofóbicos aquilo era um prato cheio, mais cedo ou mais tarde, embora os muçulmanos convivessem com Hebdo, os fanáticos iriam agir, e o mundo faria crer que agiam em defesa de todos os muçulmanos. O que é uma fraude. 

Os Estados Unidos invadiram o Iraque e destruíram o Afeganistão embasado numa premissa dessas. 

Doze franceses mortos? Sério que é isso que comove o mundo agora? Os extremistas matam pessoas a todo momento, matam sobretudo muçulmanos. 

Mataram a sangue frio o policial muçulmano que pediu para não morrer. Repito, esses caras matam muçulmanos às pencas, o mundo não se compadece. 

Essa histeria comovida, somos todos Charlie, me lembra o 11 de setembro. Não vi essa tristeza toda quando eles entraram no Mali abrindo fogo. Quando o Estado Islâmico executou, covardemente, dezenas de pessoas no Iraque, ninguém disse Somos Todos Iraquianos. Que recorte é esse? 

Allahu Akbar!


Postado no Portal Fórum / Maria Frô em 09/01/2015 


Entre barbas e pensamentos : as tiradas inteligentes de Zack Magiezi




Josie Conti

Simples ao falar, mas dono de sacadas que imediatamente popularizam na internet. 

Sua biografia é discreta, mas as dezenas de selfies que apresenta em sua página pessoal aceleram os corações das mulheres, que se tornaram suas maiores e mais assíduas fãs. 

Um homem tímido? Um galã? Um palhaço? Um narcisista? Não importa! 

Só temos a agradecer por suas descoladas e agradáveis contribuições. 

Conheça mais textos do autor em Estranheirismos.


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Postado no blog Conti Outra em 07/01/2015



Morte em Paris



Redação de Outras Palavras

Uma das hipóteses mais lúgubres do sociólogo Immanuel Wallerstein concretizou-se, em parte, esta manhã em Paris. 

Dois homens encapuzados e vestidos de negro, aparentando (ou simulando) ser fundamentalistas islâmicos, invadiram a sede de um jornal satírico francês, o Charlie Hebdo, e executaram, a rajadas de metralhadoras, ao menos doze pessoas. 

Entre os mortos estão o editor da publicação e outros três chargistas de enorme talento e renome internacional. Charlie Hebdo é irreverente, inclinado à esquerda e crítico às instituições religiosas. Esta postura levou-o, algumas vezes, a provocar o islamismo, religião de milhões de imigrantes oprimidos e discriminados na Europa.

Sejam quais forem os responsáveis pelo atentado, as consequências são potencialmente trágicas: aumento da onda xenófoba – especialmente anti-islâmica – na Europa. Crescimento dos partidos de extrema-direita. Reforço à postura ultra-agressiva que os Estados Unidos, com notável apoio da França, já adotam no Oriente Médio. Risco ampliado de guerras de provocação. 

Wallerstein adverte que a crise do capitalismo é profunda, mas poderá abrir espaço tanto para um sistema mais democrático e igualitário quanto para o oposto.

Ao entrar em declínio, a ordem hoje hegemônica liberta a emergência e expansão de valores de um pós-capitalismo; mas engendra, ao mesmo tempo, riscos de um mundo ainda mais hierarquizado, violento e desigual. As circunstâncias do atentado e seu contexto parecem validar a hipótese.

Armados de fuzis, os dois assassinos chegaram à redação de Charlie Hebdo, no centro de Paris, por volta das 11h. Sob ameaça, obrigaram a cartunista Corrine Rey (“Coco”), que entrava com sua filha, a abrir a porta do prédio. Ela relatou que falavam “um francês perfeito” e disseram pertencer à Al-Qaeda. Subiram dois andares e começaram a fuzilaria.

Chegaram num momento preciso. Às quartas pela manhã, a redação reunia-se, para definir a pauta do número seguinte. Estavam presentes o diretor, Charb, mais três cartunistas – Cabu, Tignous e Wolinski (este último mais conhecido do público brasileiro, por publicar, em abril de 2011, em Piauí, a sequência “Meio século de sexo”) – e quatro redatores (entre eles, o economista Bernard Maris, ex-membro do Conselho Científico do movimento ATTAC, em favor do controle social sobre o sistema financeiro).

Todos foram mortos na hora, junto com mais dois funcionários do jornal e dois policiais. Os assassinos teriam gritado, segundo testemunhas que os jornais franceses não identificam claramente, “Allahu Akbar” [“Alá é o Maior”] e se vangloriado de que “vingamos o Profeta”. 

Mas fugiram de carro, ao invés de se auto-martirizarem, como é comum em atentados cometidos pelo terror islâmico. Além disso, até o fechamento deste texto, nenhum grupo havia assumido o ato.

Fundado em 1992, o atual Charlie Hebdo (que resgata o nome de uma publicação anterior) não é um jornal de extrema-esquerda, ao contrário do que se afirmou no Brasil. Parte de sua equipe esteve presente em revistas humorísticas ligadas à revolta de 1968. Mas seu foco central não são os grandes temas políticos franceses ou mundiais – mas a crítica às instituições religiosas e à ultradireita.

Nos últimos anos, voltou-se especialmente contra o islamismo. Em 2005, reproduziu uma série de charges publicadas originalmente no jornal dinamarquês Jyllands Posten,consideradas ofensivas ao profeta Maomé. 

Manteve a mesma postura por anos a fio, o que despertou críticas de analistas importantes do Islã – como Alan Gresh, redator do Le Monde Diplomatique. 

Num texto publicado em 2012, ele defendeu, obviamente, a liberdade de expressão do Charlie Hebdo, mas criticou sua linha anti-islâmica. Lembrou que, além de discriminados, os muçulmanos sofrem, há anos, restrições às liberdades políticas (em 2014, o governo francês chegaria a proibir manifestação contra o ataque israelense aos palestinos da Faixa de Gaza). 

Diante deste contexto, Gresh indagava: seria correto, em 1931, em plena ascensão do nazismo, uma publicação alemã de esquerda estampar charges ridicularizando aspectos retrógrados da religião judaica?

A hipótese de que o atentado de hoje seja de autoria de fundamentalistas islâmicos é real.

Num sinal da descoesão ocidental, apontada por Wallerstein, o New York Times lembra hoje que, entre os militantes do grupo ultrafundamentalista ISIS, criador de um califado no Iraque, há milhares de europeus (além de norte-americanos, seria justo acrescentar…).

Mas a pergunta clássica – cui profit, a quem beneficia o crime – sugere não ficar apenas nesta hipótese.

Quase quinze anos após os atentados de 11 de Setembro, não foram respondidas as teorias segundo as quais a derrubada das Torres Gêmeas não poderia ocorrer sem algum tipo de participação das agências de inteligência dos Estados Unidos, nem as crônicas sobre o estranho comportamento do presidente George W. Bush ao ser informado de sua derrubada.

Mais de 100 mil pessoas saíram às ruas esta noite, em dezenas de cidades francesas, em solidariedade à redação de Charlie Hebdo. 

O clima foi de óbvia consternação e de defesa das liberdades. Manifestaram-se os que se sentem próximos de um jornal irreverente e sarcástico. Mas e a Europa profunda

Na própria França, as pesquisas colocam em primeiro lugar, na preferência dos eleitores para a próxima eleição à Presidência, Marinne Le Pen, da Frente Nacional, xenófoba e de extrema-direita. 

Na Alemanha, ressurgem, pela primeira vez depois da II Guerra Mundial, manifestações contra estrangeiros, articuladas por um movimento que se apresenta como contrário à suposta “islamização do Ocidente”. 

Que efeito terá o atentado de hoje sobre estes sentimentos já em ascensão?

As doze vítimas de hoje merecem tantas homenagens quanto cada um dos mais de 500 mil mortos no Iraque, desde a invasão norte-americana, ou as mais de 2.400 pessoas seletivamente assassinadas pelo governo norte-americano, por meio de drones, só entre 2009 e 2014.

Porém, mais que os mortos, está em questão o futuro do humanidade.

Para Wallerstein, é impossível saber, hoje, o que virá após o declínio do capitalismo.

É uma disputa que se prolongará por décadas e será definida em “uma infinidade de nano-ações, adotadas por uma infinidade de nano-atores, em uma infinidade de nano-momentos”.

O atentado de hoje chama atenção para os riscos inerentes a este cenário de crise. 

Mas pode, num sentido oposto, ecoar o apelo à ação feito, na sequência, pelo mesmo sociólogo. Ele diz:
“Em algum ponto, a tensão entre as duas soluções alternativas vai pender definitivamente em favor de uma ou outra. É o que nos dá esperança. O que cada um de nós fizer a cada momento, sobre cada assunto imediato, importa”.

Postado no site Outras Palavras em 07/01/2015


O Homem e a Mulher



Tela de Hendrick Goltzius - 1616


O homem é a mais elevada das criaturas;
A mulher é o mais sublime dos ideais.
O homem é o cérebro;
A mulher é o coração.
O cérebro fabrica a luz;
O coração, o amor.
A luz fecunda, o amor ressuscita.
O homem é forte pela razão;
A mulher é invencível pelas lágrimas.
A razão convence, as lágrimas comovem.
O homem é capaz de todos os heroísmos;
A mulher, de todos os martírios.
O heroísmo enobrece, o martírio sublima.
O homem é um código;
A mulher é um evangelho.
O código corrige; o evangelho aperfeiçoa.
O homem é um templo; a mulher é o sacrário.
Ante o templo nos descobrimos;
Ante o sacrário nos ajoelhamos.
O homem pensa; a mulher sonha.
Pensar é ter , no crânio, uma larva;
Sonhar é ter , na fronte, uma auréola.
O homem é um oceano; a mulher é um lago.
O oceano tem a pérola que adorna;
O lago, a poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa;
A mulher é o rouxinol que canta.
Voar é dominar o espaço;
Cantar é conquistar a alma.
Enfim, o homem está colocado onde termina a terra;
A mulher, onde começa o céu.

Victor Hugo


Victor Hugo (1802-1886) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos, francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras de renome mundial.



Caso Tim Maia não é o primeiro em que a Globo reescreve a História em seu benefício ou no de parceiros







Luiz Carlos Azenha 


Vi muita gente escandalizada com o fato de a Globo ter cortado, na minissérie que pretendia ser um resumo do filme sobre Tim Maia, os trechos em que Roberto Carlos desprezava o ex-colega de banda. 

O filme — e, portanto, a minissérie — foram baseados no livro Vale Tudo, de Nelson Motta.

Talvez por não envolver um ídolo tão popular, outros casos muitos parecidos e recentes de tentativas da emissora de reescrever a História não mereceram a mesma atenção. 

Quando o Jornal Nacional completou 34 anos, por exemplo, exibiu um clipe registrando a presença do repórter Ernesto Paglia no comício das diretas, em 16 de abril de 1984, em São Paulo. 


Foi o suficiente para que Ali Kamel, que ainda estava em ascensão na emissora — hoje dirige o Jornalismo — fosse ao Observatório da Imprensa dizer que
“uma pequena imagem do repórter Ernesto Paglia pode ter contribuído para rechaçar de vez uma das mais graves acusações que o JN já sofreu: a de que não cobriu o comício das diretas, na Praça da Sé, em São Paulo”.

Mais adiante, depois de contestar versões de outros autores sobre a cobertura da Globo naquele dia e de transcrever o texto da reportagem de Paglia, Kamel tenta justificar — como se a Globo estivesse no campo dos cerceados pela ditadura: 

Esquecem-se de que a ditadura ainda estava forte, tão forte que as diretas foram votadas sob a vigência das medidas de emergência, um dispositivo constitucional, decretado nas vésperas da votação, que proibiu manifestações populares em Brasília (lembram-se do general Newton Cardoso, em seu cavalo, dando chicotadas em carros presos num engarrafamento?) e proibiu a transmissão por emissoras de rádio e televisão da sessão do Congresso Nacional que acabaria rejeitando as diretas-já. Não, a Globo não fez uma campanha, mas não deixou de fazer bom jornalismo.

Kamel provavelmente escreveu de ouvir dizer, após consultar arquivos. Eu, não. 

Eu trabalhei na Globo naquela época. Era da TV Bauru, mas cobria férias dos repórteres em São Paulo. Passava meses e meses hospedado num hotel e trabalhando na redação da Marechal Deodoro. Testemunhei pessoalmente ou ouvi relatos de colegas.

A tática de quem pretende recontar a História com outro viés quase sempre envolve focar no ponto mais positivo para sua narrativa e desconhecer o contexto. 

O fato é que naquele período da História aconteceram as grandes greves do ABC, que a Globo praticamente desconhecia, quando não levava ao ar versões que o movimento operário considerava descabidas. 

Foi então que surgiu o “Fora Rede Globo, o povo não é bobo”, cantado por milhares de pessoas nas assembleias. Carros da emissora foram apedrejados. Lula costumava dizer aos companheiros para não confundir os jornalistas com os patrões e, portanto, aqueles deveriam ser poupados.

Na campanha das diretas, que surgiu antes do comício da Praça da Sé, a Globo simplesmente desconheceu as primeiras manifestações populares, algumas envolvendo milhares de pessoas. 

Era uma não notícia. A internet ainda não existia. Mesmo assim, era chocante ver as capas de jornais com fotos de manifestações e informações sobre a campanha e o Jornal Nacional absolutamente calado sobre o assunto.

Além disso, foi escancarado o apoio das Organizações Globo à ditadura militar, como porta-voz do regime. Os exemplos abundam. Um editorial escrito por Roberto Marinho em 7 de outubro de 1984, DEPOIS do comício das diretas, em que ele diz que a Revolução — isso mesmo, Revolução, não golpe — foi bem sucedida, é um deles. 

É neste contexto que deve ser analisada a “reportagem” da emissora no comício de São Paulo. 

A equipe da Globo, sim, esteve lá. Porém, a ênfase da reportagem foi no aniversário de São Paulo. 

Basta ler a própria transcrição do Ali Kamel. É o equivalente a noticiar primeiro que dois automóveis foram destruídos no centro de São Paulo e em seguida informar que caiu um Boeing sobre eles, matando os 200 ocupantes. Um absurdo que qualquer estudante de jornalismo é ensinado a nunca cometer é definido como “bom jornalismo”. 

Para um exemplo mais recente, basta relembrar o Jornal Nacional de 12 de março de 2012, dia em que Ricardo Teixeira renunciou à presidência da CBF. 

Patrícia Poeta, num texto que obviamente não foi escrito por ela, na transcrição da Carta Capital

“Ao longo de uma gestão de mais de duas décadas, a seleção tricampeã se tornou penta. Teixeira colecionou vitórias, mas também desafetos. E enfrentou denúncias”.

Uma forma nada sutil de tentar atribuir as acusações a Teixeira a rusgas pessoais.
No corpo da reportagem, narrada por um repórter que obviamente não tinha poder de decisão sobre o texto final, 22 segundos foram dedicados às denúncias num tempo total de 3 minutos e 39 segundos:
Ao longo da carreira, Ricardo Teixeira foi alvo de denúncias. Diante de todas elas, Teixeira sempre disse que as acusações eram falsas e tinham caráter político. A denúncia mais contundente foi a de que ele e um grupo ligado à Fifa teriam recebido dinheiro de forma irregular nas negociações de uma empresa de marketing esportivo, em 1999. Viu os processos serem arquivados pela Justiça.
Na Globonews, Merval Pereira foi além:
Esses problemas de denúncias contra o Ricardo Teixeira vêm de longe e ele enfrentou com tranquilidade e sempre conseguiu superar essas denúncias. [...] Então resolveu tirar o time porque viu que não tinha condições de recuperar, como várias vezes se recuperou, o prestígio político.
De novo, a sutileza: os problemas de Ricardo Teixeira foram com adversários pessoais e políticos, nenhuma relação com a corrupção que a Globo tanto gosta de denunciar na Petrobras.

Em primeiro lugar, não é verdade que todos os processos contra Ricardo Teixeira foram “arquivados pela Justiça”. 

Em O Lado Sujo do Futebol, descrevemos as manobras jurídicas utilizadas por ele para se desfazer de processos no Brasil. Descrevemos detalhadamente a relação histórica e incestuosa da Globo com João Havelange e seu sucessor, Ricardo Teixeira. 

Era apoio político em troca do monopólio nas transmissões da Copa e do futebol brasileiro. Ponto. O próprio Ricardo Teixeira, em entrevista à revista Piauí, disse que só ficaria preocupado quando as denúncias contra ele saíssem no Jornal Nacional.

Nunca de fato saíram. Naquela noite de 12 de março de 2012 a principal omissão do JN foi sobre o fato de que a Justiça da Suiça decidiria em breve se seriam divulgadas ou não as provas obtidas na investigação de João Havelange e Ricardo Teixeira, provas definitivas de que ambos receberam milhões de dólares em propina da empresa de marketing ISL em contas no Exterior. 

Este, sim, o verdadeiro motivo da renúncia de Teixeira, que a Globo vergonhosamente escondeu.

A Globo pagava à ISL, que pagava escondido a Havelange/Teixeira, que protegiam e eram protegidos da Globo. É o círculo perfeito! 

No livro também tratamos das relações da própria Globo com a ISL, empresa da qual a emissora brasileira comprou os direitos de transmissão das Copas de 2002 e 2006 depois de montar uma subsidiária, a Empire, nas ilhas Virgens Britânicas, com isso sonegando milhões de reais de imposto no Brasil, segundo a Receita Federal. 

A mesma Receita diz que a Empire serviu apenas de fachada, para justificar o falso investimento no Exterior do dinheiro usado para quitar os direitos. Como se vê, não foram apenas a ISL, João Havelange e Ricardo Teixeira que tiraram proveito de negócios obscuros em refúgios fiscais.

Como vimos no caso do comício das Diretas, também no caso Teixeira a Globo tirou proveito da descontextualização: focou nas “vitórias” em campo do cartola. 

O que nos leva ao episódio Tim Maia. 

Não só o filme sobre o cantor mostra Roberto Carlos numa luz não muito agradável. O livro em que o filme foi baseado também o faz, com menos dramaticidade. 

Sim, registra que Roberto Carlos, a pedido da mulher Nice, levou Tim Maia para fazer um disco na gravadora CBS. Mas também conta que Tim Maia ofereceu a Roberto Carlos a música Não Vou Ficar, que se tornou o primeiro sucesso de Tim, com proveito para ambos.

O livro, pelo menos, deixa claro que houve rusgas e ciumeira entre os dois: 
“Ô mermão, o Roberto aprendeu tudo comigo, mas o Roberto é branco, mermão, branco não dá, o que ele tem é que me botar na Jovem Guarda, mas ele tem medo porque sabe que eu entro e acabo logo com a banca dele”. 
Se era difícil encontrar Roberto, era impossível falar com ele, sempre cercado por um monte de gente, secretários, seguranças e puxa-sacos. Tim achava que Roberto não queria chamá-lo porque a Jovem Guarda era um programa de bons moços e ele era o Tim que puxava cadeia e fumava maconha.

O primeiro problema entre eles, ainda segundo o livro, foi quando Roberto Carlos, integrante da banda Sputniks, de Tim Maia, decidiu cantar sozinho, “por fora”, sem consultar antes os parceiros. Deu briga.

Na minissérie da Globo, além de cortar o trecho do filme em que Roberto Carlos humilha Tim Maia, a emissora deu a seu contratado, segundo a Folha, a oportunidade de dizer que ajudou Tim. 

Mais que isso, numa cena inédita colocou o ator que encarna Tim Maia no cinema para dizer na minissérie:
E foi assim, rapaziada, que Roberto Carlos lançou o gordo mais querido do Brasil”.
Assim, a Globo transformou uma relação complexa de amor e ódio, ajuda e competição — pelo menos é assim que aparece no livro — numa simplificação que beneficia HOJE a imagem de seu parceiro de negócios. Como aconteceu com Ricardo Teixeira.


   Luis Carlos Azenha


Postado no blog Contraponto em 06/01/2015