Snowden não é um desertor, um traidor e um criminoso, como afirma o governo norte-americano.
Snowden é um jovem que entrou na “guerra contra o terrorismo” por amor ao seu país e por idealismo, e dela saiu pelos mesmos motivos. Ele percebeu claramente a monstruosidade em que se transformou a NSA e os perigos que as agências de inteligência sem controle representam para a democracia. Qualquer democracia.
Quando Dilma tomou a corajosa iniciativa de protestar, na ONU, contra os omnipresentes mecanismos de espionagem dos EUA e dos Five Eyes, muitos aqui no Brasil a desdenharam. Tentaram naturalizar a espionagem. Afirmaram que a espionagem existe desde que o mundo é mundo e que, se os EUA espionam mais, é porque possuem melhores meios para fazê-lo.
Ignoraram, ou fingiram ignorar, um dado crucial: a espionagem da NSA e de outras agências de inteligência dos EUA não tem mais nenhuma relação com a espionagem clássica. Trata-se de algo qualitativamente muito distinto. A espionagem clássica era aquele jogo em que os Estados tentavam descobrir os segredos de outros Estados. Um jogo que envolvia essencialmente espiões, contraespiões, agentes duplos e informações sigilosas que pertenciam a governos.
Mas o que a NSA faz hoje é completamente diferente. A NSA devassa sistematicamente, e em escala mundial, informações que pertencem aos cidadãos comuns. E não são somente “metadados”. São também os conteúdos. Este artigo, fosse apenas um singelo e-mail para um amigo, seria devassado pela NSA, já que tem referências ao Snowden e à agência.
Assim, a NSA implantou, com apenas algumas décadas de atraso, a distopia orwelliana prevista em “1984”. A diferença é que as “teletelas” imaginadas por George Orwell foram substituídas pelos computadores, os celulares, os tablets e todos esses dispositivos que inocentemente conectamos à rede mundial. O resto é praticamente igual.
Vivemos, portanto, num mundo sem privacidade. Porém, não é só a privacidade que é ameaçada.
Na sua excelente entrevista dada à repórter Sônia Bridi, Snowden, um sujeito inteligente e articulado, comenta que esse mecanismo ubíquo e generalizado de espionagem ameaça nossas liberdades e nossos direitos. Claro. A vigilância omnipresente limita a livre e espontânea circulação de informações, o oxigênio das democracias.
Sabendo-nos vigiados, vamos, aos poucos, evitando certos temas e podando palavras e termos em nossas comunicações. É como se vivêssemos num mundo no qual nossas cartas fossem sistematicamente abertas.
Snowden, uma pessoa aparentemente discreta e tímida, teve a grande coragem pessoal de denunciar esse sério perigo à democracia. Merece, portanto, nossa gratidão e nosso respeito.
Respeito que alguns lhe negam quando tentam transformá-lo, como tudo no Brasil de hoje, em instrumento de luta política-eleitoral. Muitos dos que criticaram a presidenta por não ter ido à Washington, um gesto soberano inevitável naquelas circunstâncias, agora pressionam o governo brasileiro para dar asilo a Snowden. Mas, caso o asilo acontecesse, seriam os primeiros a vociferar contra a política externa “antiamericana” e “terceiro mundista” do governo. É o tal negócio: se ficar o bicho pega...
Não obstante, defendo, como muitos, o asilo a Snowden. Reconheço, por outro lado, que tal concessão está longe de ser trivial.
Em primeiro lugar, Snowden teria de entrar em nossa embaixada ou em nosso território. Não existe o asilo ou refúgio à distância.
Em segundo, há questões de logísticas e de segurança complicadas. Por exemplo, como trazê-lo ao Brasil em segurança? Os EUA já demonstraram do que são capazes, quando obrigaram países europeus a deter o avião presidencial boliviano por suspeitar que Snowden estava nele.
Assim, para que Snowden chegasse ao Brasil são e salvo, o Brasil teria de contar com a assistência não apenas das autoridades russas, mas também de muitos países da Europa. Caso contrário, Snowden poderia transformar-se num novo Assange, que está há dois anos preso na embaixada do Equador em Londres.
Em terceiro, há algumas questões jurídicas a enfrentar. O Brasil tem, entre outros, um acordo de assistência judiciária em matéria penal com os EUA. Tal acordo, firmado em 1997, nos tempos de FHC, não prevê, como outros acordos da mesma natureza, que a cooperação possa ser negada, nos casos em que o Estado que recebe a solicitação suspeite de perseguição política contra os acusados. Isso poderia ser um empecilho para a manutenção do asilo.
Em quarto, há o enigma do Supremo Tribunal Federal. Em 2009, o STF anulou a condição de refugiado de Cesare Battisti, autorizando a sua extradição solicitada pela Itália. Não fosse a decisão presidencial de negar a extradição, Battisti já estaria preso na Itália.
Em quinto, há a delicada questão política-diplomática. As relações bilaterais Brasil/EUA estão num nível baixo. Evidentemente, é do interesse de ambos os países que tais relações sejam normalizadas, com base no repeito mútuo. O eventual asilo a Snowden poderia azedar de vez essa relação. Precisaríamos estar preparados para essa eventualidade.
Evidentemente, a verdadeira solução, uma solução definitiva, para o caso Snowden dificilmente virá por um caminho unilateral. É muito improvável que seja uma solução russa ou brasileira.
Uma solução multilateral ou plurilateral teria mais chance de ter êxito. Assim como a questão da liberdade na internet e nas telecomunicações está na ONU, o caso Snowden, que a provocou, também precisa ser debatido em nível multilateral e plurilateral.
O ACNUR precisaria ser provocado para se posicionar sobre o assunto. Snowden, que se sacrificou pelas democracias, precisa do apoio de todas elas.
A solução ideal, no entanto, seria a solução norte-americana. Snowden deixou claro que quer voltar para casa. A sua liberdade está em seu país; não em seu exílio forçado.
Creio que chegará o dia em que Snowden será reconhecido nos EUA pelo o que ele realmente é: um herói que fez jus às melhores tradições de integridade, accountability e transparência da democracia de seu país.
Contudo, até lá ele precisará de apoio. Seu tempo na Rússia está acabando e ele precisa de um porto seguro.
Gostaria que esse porto fosse o Brasil. A sua recente entrevista humanizou-o. Ele deixou de ser Edward Snowden, um tema de geopolítica internacional, e passou a ser apenas o Edward, um cara legal a quem de bom grado convidaríamos para tomar um café e bater um papo.
Esse cara se arriscou muito defendendo liberdades. A minha, a sua, a de todo o mundo.
O mínimo que a gente pode fazer é tentar retribuir.
Edward, o cara, merece.
Marcelo Zero é sociólogo.