A particularidade dessa “adoção à americana” – alusão à expressão “adoção à brasileira”, usada para adoções informais – é que se trata de pessoas que já haviam sido adotadas através do processo legal, muitas delas vindas de países do exterior.
Seus novos pais, angustiados com dificuldades em criá-los – pois muitas vezes se revelam “problemáticos” – recorrem ao re-homing para lhes encontrar um novo lar mas, acima de tudo, para livrar-se de alguém que passou a ser um incômodo.
Um fenômeno como este não pode ser tomado de forma isolada, restrito a um determinado local ou grupo de pessoas, especialmente quando o lugar em questão ocupa posição central em nossa cultura como o são os Estados Unidos.
Tampouco trata-se de simplesmente demonizar aqueles pais que, em seu desespero, lançam mão desse recurso para livrar-se de seus filhos-problemas: com isso apenas localizamos um problema em alguns indivíduos para lavarmos as mãos daquilo que nos toca.
Penso que esse fenômeno serve para interrogar o lugar da infância e, talvez mais que isso, como se tecem os laços humanos nos tempos que correm.
Toda filiação é sempre uma adoção, independente da carga genética. Laços de sangue, apesar de poderosos, não são suficientes para garantir que um bebê torne-se um filho, é preciso que alguém deseje inclui-lo não apenas em sua família, mas na família que, queiramos ou não, constituímos com o meio social em que vivemos.
Somos deficientes instintuais, o “instinto” materno ou paterno não está nos genes, mas é fruto de uma combinação complexa de fatores – entre eles aquilo que uma mãe ou um pai experimentaram quando foram, eles mesmos, adotados por seus pais ou cuidadores.
A cada nova chegada de um bebê é preciso que (re)nasçam também pais e mães, assim como o desejo de ter aquele filho.
A adoção à americana expõe uma faceta triste da infância contemporânea: a da criança como objeto, bem de consumo desejado, o que é diferente de desejar, de fato, um filho.
Embora inexistente nas experiências concretas, a ideia da "família margarina" ainda rende muito ibope, muitos não querem ficar de fora dessa cena idealizada na qual estaria a chave da felicidade.
A adoção também está em voga: para que por num mundo superpopulado mais uma criança se há tantas precisando de um bom lar e de uma vida com melhores possibilidades?
As celebridades mostram que é uma prática admirável e, afinal, quem não quer ser belo e feliz como eles?
A vida em família, no entanto, não é apenas aquilo que os retratos e comerciais mostram. Assumir a responsabilidade pela vida de outro ser implica, além dos momentos de prazer e alegria, em renúncias, angústias, dores de cabeça, dúvidas, ambivalências, medos.
Um filho jamais é como se imaginou, salvo se os pais conseguem adaptar suas expectativas ao pequeno ser com quem se encontram – para sorte dele.
Caso contrário, se não permitem que ele seja outra coisa que não o que esperam, este terá mais trabalho para vir a ser alguém.
Como em qualquer relação tecida pelo amor, é nos desencontros entre expectativa e realidade que está a potência para o crescimento, mas também para a ruptura deste laço sempre frágil. Se em uma relação amorosa uma ruptura é dolorosa e até aniquiladora, ainda mais o é no caso de uma criança, cuja vida depende do amor de quem a acolheu.
As adoções à americana trazem à luz repetidos fracassos de um laço construído sobre expectativas que raramente se realizam: a criança-produto não equivale à sua embalagem.
Um pai chegou a fazer uma comparação com a compra de um carro usado do qual se ocultaram defeitos na hora da venda. Falas como essa revelam a lógica com que são tomadas estas adoções: trata-se da aquisição de um bem, não da acolhida de um ser com as características singulares que o compõem, fruto de sua história e dos laços que a teceram. Dentro dessa lógica, nada mais natural que desfazer-se do produto defeituoso, à falta de um Procon para adoções.
Crianças e jovens adotados trazem em sua bagagem a ruptura de seu primeiro vínculo amoroso, ferida que demanda não apenas tempo, mas amor para que possa ser curada, ou ao menos amenizada.
É frequente apresentarem sintomas que produzam rechaço em quem os acolhe: é a repetição ativa, inconsciente, do que viveram passivamente; uma tentativa fracassada, mas muitas vezes a única possível, de lidar com um desamparo que experimentaram precocemente. Não é, sem dúvida, motivo de alegria para quem os acolhe, mas tomar tais produções subjetivas como transtornos, falhas de caráter ou defeitos e, por conta disso, afastá-los é condená-los uma e outra vez à repetição da experiência traumática que as originou.
Não precisamos ir aos Estados Unidos para encontrar adoções à americana, embora o private re-homing seja talvez ainda restrito àquelas terras.
Também no Brasil são cada vez mais comuns casos em que crianças são adotadas, por compaixão ou obrigação, mas após alguns meses, quando começam a “incomodar” – ou seja, quando já não são mais os bibelôs comportadinhos e amorosos de um primeiro momento – são devolvidas a abrigos e lares de onde foram retiradas.
A tolerância a suportar os impasses e conflitos da criança, que vêm à luz quando se sentem minimamente amadas para poder expô-los, revela-se baixa: ou se comportam, ou serão devolvidas. Em outras palavras, ou fazem o que lhes é demandado, ou perdem o amor e o lar que ganharam – o que corrói ainda mais a já frágil confiança nos laços afetivos como sustentadores da existência humana.
O que aparece de forma escancarada nos casos de adoção também está presente em muitas histórias de filhos biológicos.
Impasses em serem adotados por seus pais produzem sintomas, sinais de que algo não vai bem: agressividade, desatenção, dificuldades de aprendizagem.
Em nossa cultura, no entanto, o que não vai bem não é apenas mal-visto, mas individualizado, precisa ser logo consertado, antes que interrogado.
O “conserto” oferecido é muitas vezes apenas eliminar o que incomoda, através de terapêuticas e medicamentos que pouco atentam às subjetividades às quais dizem respeito: as dos filhos, mas também as dos pais.
Nas relações amorosas, troca-se o parceiro incômodo por outro, na esperança de que com este “dê certo”; com filhos não é possível – ou bem mais complicado – trocar, então há de se consertar, de preferência com o mínimo possível de esforço: tempo é dinheiro, e ambos são muito caros para gastar à toa.
Talvez seja essa a pergunta que as adoções à americana lançam a todos, independentemente de sermos pais ou filhos, adotivos ou não: o que fazer com aquilo que nos incomoda no outro?
Descartá-lo, trocá-lo por outro modelo, tentar consertar? Ou escolher o caminho mais difícil, porém talvez mais interessante, de tentar entender o que o incômodo revela sobre nós?
Afinal de contas, não funcionamos tão bem como gostaríamos, e também corremos o risco, assim como as crianças, de nos tornarmos órfãos – não só dos outros, mas de nós mesmos.
Paulo Gleich é psicanalista e jornalista.
Postado no site Sul 21 em 24/09/2013