Marco Aurélio Weissheimer
Quem já não teve a sensação de olhar o mundo como um lugar hostil, um ambiente ameaçador, que exige um refúgio seguro, um esconderijo que nos proteja das turbulências e ameaças?
Algumas pessoas são engolfadas por essa sensação e suas vidas passam a caminhar por uma fronteira tênue entre a loucura e a dita normalidade.
O jovem cineasta Jeff Nichols construiu em “O Abrigo” (Take Shelter, EUA, 2011) uma fábula sobre a hostilidade do mundo. Vencedor do Prêmio da Crítica no Festival de Cannes em 2011, o filme protagonizado por Michael Shannon e Jessica Chastain é uma viagem dilacerante pelo interior dessa sensação de vivenciar o mundo como uma máquina de moer carne.
Segundo o relato do próprio realizador, a ideia central do filme nasceu de um episódio biográfico.
Recém casado, ele vivia uma vida repleta de amor e confiança com sua companheira. Mas o acompanhava no horizonte uma sensação mórbida que algo de muito ruim iria acontecer.
Não havia nada exatamente que pudesse explicar esse sentimento, mas ele estava lá, presente e ameaçador. Essas nuvens no horizonte acabaram dando forma ao roteiro de Take Shelter.
Curtis, o personagem vivido pelo ótimo Michael Shannon passa a ter, logo após a morte do pai, sonhos e visões terríveis sobre uma tempestade que estaria se aproximando.
Abandono e descontrole
Há possíveis explicações clínicas para os sonhos e alucinações de Curtis. Quando criança, viveu a terrível experiência de ser abandonado pela própria mãe no estacionamento de um supermercado.
Ela acaba internada com um quadro agudo de esquizofrenia e essa chaga o persegue por toda a vida. Com a morte do pai, ela se torna insuportável e passa a frequentar seu cotidiano sob a forma de sonhos, pensamentos mórbidos, alucinações visuais e sonoras.
A tempestade no horizonte passa a ser uma visão diária que vai, aos poucos, contaminando suas relações no trabalho e na família.
Curtis e a esposa Samantha têm uma filha de seis anos que é surda. O seu maior temor é abandonar a família, como ocorreu com sua mãe.
Ele estabelece aí uma linha que não pretende ultrapassar. “Não vou abandoná-las”, diz ele à esposa quando, ela, apavorada, vê o marido com uma retroescavadeira no quintal da casa abrindo um grande buraco no solo para ampliar o abrigo contra furacões.
Curtis tem certeza que a tempestade que aparece em seus sonhos e visões vai se materializar na vida real e quer estar preparado para proteger sua família. Mas o que deveria ser um fator de proteção vai se transformando em descontrole e aparente loucura.
E se houver mesmo uma tempestade no horizonte?
Aparente? A pergunta revela justamente uma das riquezas do filme. Aos olhos de todo mundo, Curtis está reproduzindo os sintomas da doença da mãe.
Ele chega a visitá-la para tentar saber se ela apresentou sintomas semelhantes aos que ele passou a vivenciar. Consulta um médico conhecido, mas se recusa a visitar um psiquiatra indicado pelo mesmo. E esconde da esposa o inferno que está vivendo, até que o ambiente familiar começa a desmoronar e ele rompe o silêncio.
Curtis, cabe lembrar, foi abandonado pela mãe em um supermercado quando criança e perdeu o pai que cuidou dele após o colapso da mãe. Tem uma filha surda, que pode recuperar parte da audição com uma operação.
Pressionado no trabalho pelas suas visões e medos, acaba perdendo o emprego. Pior: um pouco antes havia contraído um empréstimo para as obras de ampliação do seu abrigo contra a tempestade que se avizinha.
Além dos demônios interiores que habitam o filme há também os exteriores alimentados pelo quadro de instabilidade social e econômica provocado pela crise financeira que explodiu em 2008 nos Estados Unidos. A ameaça do desemprego e o fantasma das hipotecas estão sempre presentes.
Assim, embora os sintomas de uma enfermidade mental sejam abundantes, há uma suspeita que percorre sutilmente toda a narrativa: e se houver mesmo uma tempestade no horizonte, se as ameaças forem reais, como devemos nos comportar?
No filme, a vida do protagonista só não afunda totalmente porque a sua esposa decide não abandoná-lo apesar de todas as evidências apontando para uma repetição do que havia acontecido com a mãe de Curtis. Ela fica e o acompanha em uma dolorosa jornada em busca de um abrigo seguro.
A fadiga de ser si mesmo
O sociólogo francês Alain Ehrenberg, em seu livro “La fatigue d’être soi: Depression et socété” (“A fadiga de ser si mesmo: depressão e sociedade”), fala sobre como a depressão tornou-se uma enfermidade inerente a uma sociedade onde a norma dominante é a exigência da responsabilidade e da performance.
Ehrenberg se pergunta: o que significa, afinal, tornar-se si mesmo? No livro que busca a resposta a essa indagação, ele aponta como ela envolve uma série de espinhosos problemas de fronteira: entre o permitido e o proibido, o possível e o impossível, o normal e o patológico. Essa construção, observa, envolve relações instáveis entre culpabilidade, responsabilidade e patologias mentais.
O filme de Jeff Nichols não é um tratado sobre a depressão, a esquizofrenia ou alguma outra doença mental.
Ele transita justamente por essas zonas de fronteira apontadas por Ehrenberg e sobre as ameaças que as acompanham.
No final do filme, que não será contado aqui obviamente, um gesto da filha de Curtis e Samantha indica que o verdadeiro abrigo contra as tempestades não reside em esconder-se em um buraco embaixo da terra ou algo do gênero.
Para enfrentar a hostilidade do mundo é preciso, sobretudo, permanecer juntos.
Postado no blog RS Urgente em 16/10/2012