Os quereres do povo
Muitos desses quereres refletiram , lá pela metade do século passado, uma realidade em que esteve presente o preconceito, ainda que não fosse esse , intrinsecamente, o objetivo das mensagens. O nosso cancioneiro registra frases de compositores notáveis resvalando pelo politicamente incorreto:“Quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar“ dizia o verso de Wilson Batista em “Emília”, enquanto Lamartine Babo afirmava para a mulata “Eu quero o seu amor” e justificava com o fato de que a cor não pega...
Antes disso, uma das pioneiras da nossa canção popular, Chiquinha Gonzaga, imortalizou um carnavalesco refrão de afirmação pessoal : ”O abre alas, que eu quero passar”, que, em uma versão mais moderna e provocadora, nos anos 70, Sérgio Sampaio transformou em “Eu quero é botar meu bloco na rua”. Uma euforia que seguramente Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito não mostravam, em versos que traduziam o amor mal resolvido, na antológica “A flor e o espinho”: “Tira o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor”.
Na vida, porém, e felizmente, nem tudo são espinhos e o amor se afirma como um querer perpétuo nos versos da “Andança” de Paulinho Tapajós, Danilo Caimmy e Edmundo Souto (“Por onde for, quero ser seu par”) ou de “Corcovado”, do Tom Jobim (”Quero a vida sempre assim com você perto de mim até o apagar da velha chama”). O desejo de enriquecer o amor está presente na deliciosa “Noite do meu bem”de Dolores Duran ( “Hoje eu quero a rosa mais linda que houver e a primeira estrela que vier para enfeitar a noite do meu bem”) , ou na tão surpreendente como bela metáfora de Martinho da Vila em “Disritmia”: “Eu quero ser exorcizado pela água benta desse olhar infindo”rivalizando com a “Tatuagem” do Chico Buarque (“Quero ficar no seu corpo feito tatuagem , que é pra te dar coragem de seguir viagem quando a noite vem”. Amor e humor se vinculam nos versos da “Irene” de Caetano (“Quero ver Irene rir”) ou na “Vitoriosa”, de Ivan Lins (“Quero sua risada mais gostosa”). E o sentimento amoroso segue assim, tema recorrente em nossas canções, no desejo simples de quem afirma, como Dominguinhos, “Eu só quero um xodó”, ou na tentativa de moldar o outro, nas palavras que Leoni fazia Paula Toller entoar:“Eu quero você como eu quero”...
O bucolismo resultante da integração do homem com a natureza nos deu “Casa no Campo”, em que Zé Rodrix e Tavito, na voz imortal de Elis ( Veja o vídeo ) imaginaram “carneiros pastando solenes no jardim”, ao lado de “um filho de cuca legal”, certamente um “filho” bem diferente daquele moleque , irreverente, malicioso e nada infantil que a marchinha de carnaval de Jararaca e Vicente Paiva, lá nos anos 30, imortalizou no verso “Mamãe eu quero mamar”....
A natureza tem estado muito presente em nossa música, em construção romântica da cumplicidade com as venturas ou desventuras do homem. Cartola implora em “Preciso me encontrar” : “Quero assistir ao sol nascer/ Ver as águas dos rios correr /Ouvir os pássaros cantar”, enquanto Edu lobo constrói sua Pasárgada com o nome de “Candeias”, desejando: “Quero ver a lua vindo por detrás da samambaia / Rede de palha se abrindo em cada palmo de praia”.
Os quereres do homem transcendem o mundo afetivo circundante de pessoas a quem ele ama ou do lugar que habita, quando ele se percebe um ser gregário, com responsabilidades sociais. A nossa música popular mostrou isso em momentos importantes e cruciais de nossa história recente, Milton Nascimento, com “Coração de Estudante”, gritava o desejo da liberdade : “Quero falar de uma coisa / Adivinha onde ela anda / Deve estar dentro do peito / Ou caminha pelo ar“. Lulu Santos popularizou um querer coletivo ao afirmar que queria “crer no amor numa boa / e que isso valha pra qualquer pessoa”, e mesmo o questionado comprometimento social de Roberto Carlos cunhou versos como “Quero levar o meu canto amigo a qualquer amigo que precisar”, enquanto Elis , nas palavras dos irmãos Valle (“Black is beautiful”), cutucava o preconceito e afirmava a etnia negra: “Eu quero um homem de cor, um deus negro do Congo ou daqui”. Preconizavam um ambíguo fim da tristeza os versos de Niltinho e Haroldo Lobo, nos fins dos anos 60 : “Quero voltar aquela vida de alegria/ quero de novo cantar”. Muitos anos depois, quando o povo já podia cantar, Cidinho e Doca foram fundo , no “Rap da Felicidade”, definindo-a com receita tão simples de entender quanto complicada de ver realizada: “Eu só quero é ser feliz, Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, E poder me orgulhar, E ter a consciência que o pobre tem seu lugar.”. Cazuza tinha ido, um pouco antes, mais longe na complexidade do seu apelo: “Ideologia, eu quero uma pra viver”.
Com todos esses quereres, marcados ora pela simplicidade que a pureza abona, ora pela palavra criativa dos grandes poetas, e: mesmo sabendo que o passado já produziu desejos como o “mocotó” (de grande Jorge Bem Jor) ou o “ovo de codorna pra comer” (do ícone Luiz Gonzaga), a verdade é que não merecíamos estar ouvindo agora “Eu quero tchu, eu quero tcha”, do Shylton Fernandes. É ou não é?
Rodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.
Postado no blog Direto da Redação em 09/09/2012