Nikelen Witter
Uma das minhas grandes conquistas da vida adulta foi fazer com que levassem à sério o tempo em que eu estava lendo. Cresci ouvindo a frase: “Nika, tu que está aí, só lendo, faz tal coisa.” E, veja bem, minha casa não era exatamente uma dessas casas em que se desestimula a leitura. Pelo contrário. Meus pais sempre acharam que minha fúria por ler devia ser alvo de grandes incentivos, mesmo que nenhum dos dois fosse um grande leitor. Para eles, a leitura era um passatempo, algo para se fazer quando não se tem mais nada para fazer. Já eu sempre fui uma viciada, no amplo e mau sentido da palavra. Aprender a ler foi minha principal meta em toda a primeira infância e, logo, eu queria devorar qualquer coisa escrita que me passasse pela frente. E eu preferia brincar sem outras crianças por perto para poder deixar a imaginação alimentada de histórias voar sem ter de ficar dando boletins sobre isso. Ou seja, chata desde criancinha.
Sei, você lê isso e pensa: “não, de forma alguma, uma criança imaginativa devia ser adorável”. Olhe o quadro com mais atenção. Meus pais precisavam justificar aos amigos uma menina que distraia com a presença de letras em qualquer lugar – paredes, jornais, bulas de remédio – a ponto de não ouvir, não responder e não se interessar pela presença das outras pessoas. Pior: como explicar às outras crianças que eu, sentada, olhando para uma parede, fazendo expressões e rindo sozinha, estava brincando? Minha pobre irmã chorava. Alguns adultos deviam questionar minha sanidade, mas, nos idos dos 80, se você tinha boas notas era mentalmente são até prova em contrário ou até trucidar o gato do vizinho. Nunca fiz nenhuma das duas coisas, logo, era só chata, não louca.
Na adolescência, eu passei a sumir. Cada novo livro eram dois dias sem que as pessoas me vissem mais do que para as refeições (por vezes, nem isso). Os vizinhos acreditavam que meus pais tinham apenas uma filha e eu era uma visita ocasional. Ainda assim, para todos em meu em torno, a minha leitura não era uma vocação, mas um passatempo, nada sério. Isso se estendeu até a época da faculdade. “Faz tal coisa, Nika, depois tu volta a ler”. Num dado momento, entramos num debate sobre o tempo. “São apenas 15 minutinhos, filha.” Ora, 15 minutinhos são 5 a 10 páginas de texto (dependendo do texto). Isso é um mundo, uma imensidão. E, de 15 em 15 minutinhos se vão meias e uma horas e o que atrasa é a minha leitura. Isso porque eu não estou fazendo nada, só lendo. Ora, eu estou lendo! E ler também é trabalho (na faculdade é duas vezes isso).
Minha conquista de espaço, porém, nem foi das mais árduas. Tenho alunos que relatam situações ainda piores. No mundo rural gaúcho ler muito enlouquece, e com tanto o que fazer, uma sombra e um livro é coisa de quem não quer trabalhar, isso sim! Somam-se outros argumentos. Vá brincar ao invés de ficar “só lendo”. Vá viver ao invés de ficar “só lendo”. Vá se divertir ao invés de… Vai trabalhar, vagabundo.
Minha reivindicação – igual a que fiz em casa há tantos anos – é que: ler também é trabalho. E sim é diversão e brinquedo e vida. Quem lê não está fazendo “nada”. Está viajando, construindo, crescendo. Está lendo. Traduza 15 minutos em páginas e as páginas em conhecimento e sensações e verá o quanto eles custam ao leitor que larga seu livro. Seja tolerante com os leitores, pois se tem algo que eles não estão fazendo é “só” lendo.
Postado no blog Sapatinhos Vermelhos em 24/07/2012