por Marcelo Semer
A proposta da Comissão de Juristas que estuda o novo Código Penal de descriminalizar o uso de entorpecentes incomodou a muitos que se acostumaram a ver na repressão à droga a salvação da humanidade.
A história, contudo, tem nos ensinado que a guerra contra as drogas enriqueceu os cartéis, corrompeu os policiais, fortaleceu as facções criminosas, mas não salvou os viciados em nome de quem supostamente vem sendo travada.
Estes teriam ficado em situação melhor se as estratosféricas quantias gastas nesta guerra tivessem sido empregadas na saúde pública –o que, em última instância, justifica todo esse aparato.
E antes que cronistas do caos alertem para a loucura de uma solução jabuticaba, daquelas que só existem no Brasil, atenção para o fato de que resposta similar já foi implantada com sucesso em Portugal e recentemente anunciada como proposta pelo atual governador de Nova York. Sim, a pátria da “tolerância zero” que empolgou um sem-número de especialistas na defesa da lei e da ordem, também está pensando em não punir usuários de entorpecentes.
Andrew Cuomo propôs descriminalizar a posse da maconha, justamente “para acabar com a discriminação contra latinos e negros”, os mais atingidos pela ação policial. No Brasil, não é muito diferente.
Como se sabe, a vigilância policial não se distribui proporcionalmente entre toda a sociedade e a força da repressão é mais sentida pelas camadas mais pobres, sujeitas à fiscalização na rua, às batidas policiais, às revistas noite afora.
A proposta brasileira não faz distinção entre drogas, mas ainda prevê punição para posse de uma quantia superior a cinco dias de uso ou aquela que ocorre próximo a escolas.
A Comissão ainda não definiu claramente o que sugere para as penas do tráfico, mas se espera que aprenda lições com a lei de 2006, que aumentando as penas, acabou por duplicar o número de presos, sem ter conseguido qualquer eficácia na diminuição no consumo ou mesmo no comércio.
O que a repressão contra as drogas está conseguindo, com impressionante sucesso, é apenas superlotar as cadeias.
Na correia de transmissão do tráfico, vendedor preso é vendedor posto, de modo que a grande maioria das prisões de microtraficantes realizadas pela polícia não produz qualquer resultado no comércio ilícito.
Em contrapartida, um número cada vez maior de jovens pobres vem sendo encarcerado por anos, eliminando qualquer possibilidade de recomeço de vida e servindo de exército para facções criminosas confortavelmente instaladas nos presídios ou fora deles.
A força com que a polícia investe contra esses pequenos traficantes é desproporcional se medida, por exemplo, em relação a corruptos ou até mesmo homicidas.
O tráfico de entorpecentes já é responsável por 60% das prisões de mulheres e 25% das prisões de homens adultos no país. Mas ninguém de bom-senso consegue supor que um comércio dessa magnitude, de proporções industriais e vinculações internacionais, seja exclusivamente tocado por pés-descalços.
A repressão se concentra nas áreas mais pobres, mas dá as costas para o crime que se organiza nos desvãos do Estado e da própria polícia. Assim feita, apenas aprofunda a noção de criminalização da pobreza e controle social.
Até onde podemos ver, os juristas da comissão não estão refletindo sobre mudanças significativas nos paradigmas penais, mas apenas propondo legislar sobre a emergência e o pragmatismo.
Mas a proposta que visa repensar o modelo de punição dos crimes de entorpecentes, ainda que muito tímida, não deixa de ser um bom começo.
Se pudermos trocar repressão por saúde, só quem sairá perdendo será o próprio tráfico.
Marcelo Semer juiz de direito em São Paulo e escritor. Membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia
Postado no blog O escrevinhador em 29/06/2012
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