“Manifestante” na França, “Vândalo” no Brasil: é o conservadorismo matreiro




por Rodrigo Vianna

Durante essa semana, ouvi os maiores absurdos sobre a greve dos metroviários e ferroviários de São Paulo. Claro que ninguém gosta de chegar à estação e encontrar os trens parados. Claro que o bom jornalismo precisa mostrar as dificuldades que uma greve desse tipo gera para os cidadãos. Tudo isso está ok.

Mas o grau de conservadorismo embutido nas coberturas da chamda grande mídia é algo assustador. Já não sei se a cobertura reflete o conservadorismo de certo público, ou se é o contrário. 

Na internet, li comentários absurdos: “a culpa é do molusco de nove dedos”, ou “sindicalista pra mim devia morrer”. Essas pessoas existem, não são ficção. Nas ruas, também ouvi coisas parecidas, mas sem a mesma agressividade que a internet costuma estimular…

Quase não se discutiu – na cobertura midiática – a situação lamentável dos transportes na maior metrópole sul-americana. Uma greve como essa não seria gancho para um debate sério? Seria…  Mas é esperar demais desse jornalismo trôpego…

Em parte, a cobertura midiática que criminaliza sindicalistas e grevistas (aliás, vale ressaltar que os sindicatos que comandaram a greve em São Paulo não são cutistas, não tem ligação com Lula nem o PT, por isso esse discurso de culpar “petistas” é, além de tudo, obtuso) alimenta-se de um conservadorismo tosco, que costuma enxergar ”conflito” como “desordem”. Conflito não é visto como sintoma de que algo não vai bem. Conflito não é visto como um momento de inovação criativa. Conflito é baderna. Greve é baderna.

Mas há um outro conservadorismo, mais sofisticado, a alimentar essas coberturas. E o cartaz que reproduzo acima reflete exatamente isso. Qualquer cidadão medianamente informado sabe que a História da Humanidade se fez – e ainda se faz- a partir das contradições e dos interesses conflitantes. O moderno Estado liberal, por exemplo, é filho de uma Revolução sangrenta, ocorrida na França, em 1789. Nossa imprensa, duzentos anos atrasada, talves visse Danton e Robespierre como “baderneiros” e “vândalos”…

Claro, não quero comparar grevista de transporte em São Paulo com jacobino francês… 

Mas não é preciso ir tão longe…  

O jornalismo conservador trata manifestantes franceses por esse nome: “manifestantes”. É só no Brasil que manifestante vira “vândalo”. Conservadorismo matreiro, que por vezes se traveste de “moderno”, se recicla, mas está sempre lá – a frear as mudanças, transformando qualquer ameaça de rompimento em reforma tênue e limitada, evitando os “arroubos”, os “exageros”, os “radicalismos”.

Dia desses, o Igor Felippe escreveu aqui um belo artigo, lembrando exatamente essa tradição brasileira – tão bem estudada por Florestan Fernandes: a cooptação que esvazia conflitos, que finge dissolver as diferenças.

Ontem mesmo, assistia eu a uma sessão da CPI do Trabalho Escravo, pela TV, quando vi dois deputados ruralistas esbravejando contra os “exageros” embutidos nessa campanha pela erradicação do trabalho escravo no Brasil. “Veja, agora querem que toda fazenda tenha pelo menos um banheiro pra 40 pessoas! Se isso for trabalho escravo, aqui na Câmara mesmo somos escravos, falta banheiro pros deputados”.

É uma cara de pau sem fim. E o sujeito (deputado do PMDB-SC) dizia isso ressaltando que “respeita muito” o Ivan Valente (PSOL-SP) – deputado que cobrava mais ações contra o trabalho escravo. Respeita, mas acha que é preciso encontrar um “equilíbrio”. Equilibrio entre escravo e dono do escravo? Esse é o Brasilsão de meu Deus…

Quem tem o desplante de não se ajeitar na grande conciliação, é tratado como “vândalo”, “radical”. E expelido, feito um caroço de jabuticaba.

É um tipo de mentalidade fortíssima na sociedade brasileira, e que tem defensores de alto a baixo. Conservadorismo matreiro. Eu poderia escrever muito mais , mas nem precisa: o cartaz lá em cima já diz tudo. 

Nota: recebi a imagem reproduzida acima pelo facebook; já não lembro mais quem mandou, peço desculpas por não citar o autor da didática montagem. Se ele aparecer por aqui, darei o devido crédito…

Postado no blog O escrevinhador em 24/05/2012

Sobre o episódio Xuxa



Sou fã de carteirinha do trabalho da Ministra Maria do Rosário. Já era sua admiradora antes mesmo dela ser ministra. Acompanho com admiração e entusiasmo o seu trabalho como parlamentar que trata, historicamente, de temas espinhosos na área de direitos humanos, a exemplo, dentre outros, do enfrentamento à homofobia, à exploração sexual de crianças e adolescentes e da sua luta pela apuração de abusos e violações dos direitos humanos ocorridos na época da ditadura.



E sou fã de carteirinha também do trabalho desenvolvido na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, em especial o da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente – SNPDCA, capitaneada bravamente pela Carmen Silveira de Oliveira e sua equipe e cujas ações de Enfrentamento à Violência Sexual de Crianças e Adolescentes e do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte, conheço mais de perto. 


O trabalho desenvolvido através destas ações tem mérito reconhecido em âmbito internacional pelo seu ineditismo e coragem e, no caso específico do PPCAAM, por exemplo, o governo brasileiro traz a público a dificílima discussão sobre a letalidade entre crianças e adolescentes, assunto este que nenhuma sociedade tem coragem de abordar, já que abordá-lo significar assumir a nossa negligência principalmente com as crianças e adolescentes pobres deste país e que são abatidos como bichos diariamente nas periferias das nossas grandes cidades.

Glória Perez deu visibilidade através do seu trabalho a temas cuja complexidade a sociedade brasileira só teria condições de compreender através das novelas, atingindo massivamente um grande público e propondo uma discussão inteligente a partir do entretenimento. Sua próxima novela, por exemplo, entre outros temas, vai abordar a questão do tráfico de pessoas. Glória Perez é uma ativista incansável junto às mães e familiares de vítimas de violência, e seu trabalho como ficcionista é compatível com uma prática que a legitima como figura fundamental na prevenção à violência no nosso país.

Há centenas de projetos e ações da maior importância na Esplanada dos Ministérios que a maioria das pessoas desconhece e isto é lamentável, ações maravilhosas, de impacto decisivo e que as pessoas que não estão diretamente envolvidas sequer suspeitam existir e isto também é lamentável. É da maior relevância, portanto, quando celebridades, artistas ou intelectuais assumem publicamente determinadas causas, principalmente as mais difíceis de tratar como as relativas ao abuso de crianças e adolescentes, outro tema que, como sociedade, gostaríamos de esquecer e silenciar, dada a magnitude do horror e do tamanho das providências que devemos, socialmente, todos, tomar. Este envolvimento, portanto, do maior número de atores sociais, na iniciativa que leve ao debate e á reflexão é bem vinda e aplaudida.

Xuxa Meneghel desde 2007 está firmemente engajada no apoio a campanhas governamentais, como “Não bata, eduque” ou como madrinha nacional da campanha contra exploração sexual de jovens, entre outros. Seu depoimento no Fantástico do domingo passado dividiu a opinião pública num grupo que a chama, nas redes sociais, de vadia, pedófila e oportunista, de um lado e do outro, por pessoas que a apoiam e são solidárias, tendo em vista a sua situação, sabemos agora, de adolescente e criança que foi molestada.

Diferentemente do trabalho de Gloria Perez e de outros artistas que apoiam campanhas e causas desta natureza, o que causa certo desconforto é que o trabalho de Xuxa Meneghel sempre propôs uma espécie de imbecilização da infância e da adolescência no nosso país, criando um equivocado e desastroso caldo de cultura desdobrado ad infinitum numa esteira de discípulos que ainda não termina de acabar. Incentivou através do seu trabalho tudo aquilo que as políticas governamentais combatem duramente, como o consumismo infantil, a sexualidade precoce das crianças, a superexposição midiática mulheres e das meninas, para não ir muito além.

Talvez seja este descompasso entre a prática e o discurso que traduza, na verdade, a desconfiança de muitos sobre o seu depoimento. O de um trabalho que nega, ali, no frigir dos fatos, todo o ideário de autonomia e legitimidade que estas políticas governamentais trouxeram para a vida das crianças e adolescentes de forma definitiva.

As ações governamentais para a infância e a adolescência que temos hoje no Brasil são soberanas, falam por si e estão implementadas em todo o país, algumas delas se constituem em referência internacional pelo seu ineditismo, consistência e ousadia. É ingênuo e equivocado pensar que o depoimento da Xuxa vai fazer com que as pessoas vão se tornar mais conscientes sobre a discussão sobre o abuso infantil, no mínimo porque a escolha do testemunho, dada a sua total falta de senso crítico e reflexão sobre o que realmente seja ser criança e adolescente neste país podem nos fazer pensar, antes de tudo, que a escolha da tal da rainha dos baixinhos para atender a esta demanda hercúlea, foi um colossal e desastroso engano.

Lélia Almeida é escritora

Postado no blog Sul21 em 24/05/2012 
Obs.: Trechos grifados por mim.

O caso Xuxa e o marketing da desgraça


Juremir Machado da Silva


Xuxa abriu o coração no último domingo.
Contou que foi abusada sexualmente quando menina.
Só se fala disso.
Os especialistas garantem que a atitude dela ajudará no combate a esse tipo de crime.
Foi um dramalhão terrível.
De quebra, Xuxa alavancou a audiência do Fantástico, cada vez menos fantástica, e voltou ao palco.
A eterna chatinha andava em baixa.
A sua confissão não veio de nada. Foi calculada, estudada, planejada como uma boa estratégia de marketing.
A mídia deitou e rolou. Xuxa deu aos jornalistas a oportunidade de usar todos os clichês que mais adoram, da atitude corajosa ao abriu o coração usado por mim acima. Um carnaval de sentimentos, lágrimas, traumas e audiência.
Pensar que foi só marketing pode ser criticado como um olhar mesquinho.
Achar que foi só um surto de consciência remete certamente a um oceano de ingenuidade.
A lei maior do marketing é: quando nada mais surtir efeito, recorra a um drama pessoal.
Nada mais contudente do que uma celebridade, uma gata borralheira transformada em princesa, que revela os traumas mais íntimos, tristes, sórdidos, capazes de produzir identificação com qualquer um, qualquer mortal.
Eu pensava que Xuxa havia crescido em Santa Rosa.
Fiquei sabendo que, como Ronaldo Fenômeno, viveu mesmo foi no subúrbio carioca, em Bento Ribeiro.
De repente, Xuxa enfatizou seu lado classe C.
Será que até o abuso sexual depende agora do departamento de marketing para vir à luz.
Dilemas do mundo hipermoderno.




Postado no Blog Juremir Machado da Silva em 24/05/2012

Garfield descendo escada...






E na CPI...


No picadeiro da CPI


cara de paisagem. monet



Pô, ema! A triste vitória da gente que já não é gente...






(*) Cristiano Antunes Souza
Neste 22 de maio, em que celebramos o Dia Internacional da Biodiversidade, bebo da fonte de dois dos meus mais diletos mestres de poesia para falar sobre o tema. Porque mais do que reconhecer todas as formas de vida existentes como legítimas possuidoras da Terra, tal como nós, e a importância – óbvia – delas todas para nossa própria sobrevivência, as mensagens destes artistas me auxiliam a procurar viver sob uma outra perspectiva, para mais além da técnica e para mais perto do sonho de uma sociedade melhor.
Manoel de Barros, pantaneiro transmutador de palavras, sábio da língua dos musgos e dos passarinhos e douto em apreciação de insignificâncias, cedo me fez voltar a visada para respeitar o que é pouco, cultivar o que é menos, aceitar o que é diferente. Tudo o que é capaz de engravidar a manhã ou colocar arco-íris no olho das máquinas.
Dom Jaime Caetano Braun, payador missioneiro, xucro filósofo das paisagens vivas da pátria grande, que dilatou com seus versos-denúncias uma sabedoria nativa imorredoura, e que nos deixou sobre os encantos do início da primavera este clamor:
(…) E o homem, defronte a isso, até parece impossível… vai se tornando insensível, por força de algum feitiço… é um criminoso, um omisso, da forma mais inconsciente, gente, que já não é gente, buscando outra trajetória, depois da triste vitória, de matar o meio ambiente (…)
Pois agora, testemunhas desta crise civilizatória sem precedentes de nossa humanidade, onde o respeito à diferença e à diversidade de vidas se faz mais do que urgente, reparto essas linhas (que não são inéditas mas muito propícias), inspiradas na leitura destes dois gênios do nosso Brasil. E desejo que recobremos forças e esperanças para lutar por um outro mundo, ainda que pareça impossível, mesmo que pareça tão estranho quanto falar com animais.
Pô, ema!
- Pô, ema!
Viste a perdiz?
O bacurau, o quero-quero, a buraqueira…
Viste a tachã, a saíra, o biguá?
O tucano, a garça, a saracura…
Viste cisnes, gaviões, carcará?

- Pô, ema!
em tuas andanças,
que outro bicho de pena
tens visto nos campos pampeiros?
seriema, jacú, jaçanã?
quem tens visto nos banhadões,
no meio das corticeiras….
ratão, capivara, gambá?
e n’alguma beira de açude,
trançado n’os aguapé:
lontra, mão-pelada, jacaré?
- Pô, ema!
o que tu me conta:
tatú? veado? tamanduá?
perdidos nos baita potreiros
onde verdeja o alecrim…
o que tu acha, campeira!
dos outros bichos que há…
de pêlo, de couro ou de cheiro,
tens visto, por aí, assim?
- Pô, ema!
se pudesses ver nos meus rios…
no meio das muitas marrecas,
bem na época do dourado,
surgir um pato-bagual!
- Pô, Ema, se tu visses…
de dentro destes matagais,
gatos, sorros, bugios!
serpentes, rãs, pererecas…
urutau, bicho-pau, arlequim!
- Pô, ema!
será que o homem não vê?
em meio a duas orquídeas,
no alto do figueirão,
escondido na barba-de-pau!
um filhote de forneira…
clamando por mais compreensão!
Poema de “pô, ema’s!”
viventes da nossa pampa,
ocupando tantos lugares,
diversos e todos parentes…
quem sabe não fica a semente
ou ovo – destes teus versos,
p’ra educar toda gente!

Recado da natureza…
rima livre, singeleza…
quem sabe não fica a semente?
(*) Biólogo
Postado no blog RS Urgente em 22/05/2012