A tradição autoritária da reitoria da USP
As relações da alta cúpula da Universidade de São Paulo com a tradição autoritária brasileira, que vieram à tona recentemente durante a gestão de João Grandino Rodas, não são, infelizmente, recentes. Rodas não está sozinho no hall dos reitores da USP ligados à ditadura militar e simpáticos a seus métodos de repressão e perseguição.
A colaboração da administração da USP com a ditadura civil-militar instalada em 1964 foi intensa e profunda. O reitor da USP “eleito” em 1963, Luiz Antônio Gama e Silva – que, como Rodas, assumia a reitoria após deixar a diretoria da Faculdade de Direito do Largo São Francisco – era um “revolucionário de primeira hora”. Foi participante ativo da conspiração que depôs o governo João Goulart e apoiador do novo regime, com passagens pelos Ministérios da Justiça e da Educação e Cultura. Posteriormente, já durante o governo Costa e Silva, licenciou-se do cargo de reitor da Universidade de São Paulo para assumir o Ministério da Justiça. Lá, redigiu o famigerado Ato Inconstitucional número 5 (AI-5), que completou o processo de suspensão das liberdades democráticas desencadeado com o Golpe de 64.
A intensa relação de Gama e Silva com o Governo Militar e o fato de ele ter permanecido reitor da USP, ainda que licenciado, durante praticamente toda a década de 1960, fizeram da Universidade de São Paulo um palco privilegiado para as perseguições políticas do período ditatorial.
As perseguições, demissões e aposentadorias arquitetadas diretamente por Gama e Silva lhe permitiram destruir o grupo que, representando as faculdades e escolas progressistas, o ameaçava por dentro das estruturas de poder da Universidade. Mas Gama e Silva foi além e destruiu também as forças que se contrapunham à tradição autoritária da USP por fora da estrutura de poder, ou seja, o movimento estudantil. Nesse sentido, atuou diretamente na invasão da Maria Antônia pelo exército em 1968. Assim, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências, que abrigava o núcleo vivo do movimento estudantil de esquerda da USP, foi transferida para os barracões da cidade universitária e, posteriormente, divida em Faculdades e Institutos dispersos.
O pouco espaço que sobrou para o movimento estudantil da USP foi destruído na reitoria de Miguel Reale. Professor da Faculdade de Direto e próximo de Gama e Silva, Reale promulgou, por decreto, o Regimento Disciplinar de 1972, ainda em vigor, que proíbe toda e qualquer manifestação política no interior da USP.
Valendo-se do expurgo da sua oposição dentro das estruturas de poder da universidade, da destruição das bases de organização do movimento estudantil e dos mecanismos de fortalecimento inerentes à estrutura de funcionamento da USP, o núcleo conservador e autoritário liderado, naquele momento, por Luiz Antônio Gama e Silva, conseguiu uma hegemonia quase total no controle da maior e mais importante universidade pública brasileira.
Nem o processo de abertura política, iniciado na década de 1980, conseguiu impulsionar o movimento de renovação da USP. Todas as propostas de reforma da estrutura de poder da universidade foram derrotadas na reforma de 1990, e o Estatuto da USP foi mantido praticamente intacto. Os seus traços gerais falam por si:
- Um poder quase absoluto dos professores titulares (que representam menos de 1% da comunidade universitária).
- Pouquíssima participação de estudantes, funcionários e demais professores nos seus órgãos decisórios.
- Forte concentração de poder na reitoria, sobretudo em relação à aprovação do orçamento.
- Ausência de autonomia para as unidades, que ainda têm que submeter uma lista tríplice de diretores eleitos ao reitor, que consegue, com isso, desestimulando a oposição, formar um conselho universitário dócil e obediente.
Ainda nesse movimento de transição sem transição, o regimento disciplinar de 1972 foi mantido inalterado. Segue proibindo greves, manifestações políticas e a liberdade de expressão no interior da USP . No mesmo espírito autoritário, a alta administração da universidade segue limitando o acesso a documentos oficiais (por exemplo, as atas de reuniões de departamento, congregações e conselhos centrais não são publicizadas) depois de ter promovido, durante a reitoria de Hélio Guerra (1982 – 1986), uma verdadeira “queima de arquivo”, com a destruição de centenas de documentos oficiais da universidade, relativos ao período ditatorial .
É esse contexto que permite entender o real significado da gestão de João Grandino Rodas. Oriundo da Faculdade de Direito, como Gama e Silva e Miguel Reale, Rodas tem ligações no mínimo incômodas com a ditadura militar. Na condição de membro da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), ele votou contra a atribuição de culpa aos regime militar em pelo menos 11 casos, dentre eles, a morte do estudante Edson Luís e da estilista Zuzu Angel. Talvez por isso, tenha merecido a “Medalha de Mérito Marechal Castello Branco”, conferida pela Associação Campineira de Oficinas da Reserva do Exército, prêmio que o reitor ostenta orgulhosamente em seu Currículo Lattes .
A esse histórico somaram-se ações mais recentes. Primeiro, a invasão da Faculdade de Direito pela Polícia Militar em 2007, durante um ato pacífico organizado pela UNE em parceria com o Centro Acadêmico XI de Agosto. Depois, sua atuação como presidente da Comissão de Legislação e Recursos da USP para autorizar a entrada da Polícia Militar na Universidade, em caráter preventivo, durante o período de greves. Protestos a essa medida e a resposta da PM resultaram na batalha campal de julho de 2009, quando a Tropa de Choque perseguiu uma manifestação de estudantes, funcionários e professores, dentro da Cidade Universitária, culminando em um bombardeio da FFLCH com gás lacrimogênio e de efeito moral. Mais tarde, Rodas participou ativamente do grupo que pressionou a reitora Suely Vilela a realizar as reuniões do Conselho Universitário no Instituto de Pesquisa em Energia Nuclear, portanto, em área militar para evitar protestos.
Já enquanto reitor, Rodas criou um grupo especial e secreto para “monitorar” atividades políticas na USP, a denominada “sala de crise”. No mesmo período, responsabilizou-se pelas obras do monumento em homenagem aos mortos e perseguidos pela ditadura militar, trocando sutilmente o seu título para “Monumento em Homenagem a mortos e cassados na Revolução de 1964”, causando mal estar dentro e fora da Universidade . Pouco depois, usou um órgão de imprensa da própria USP para desmerecer os mortos e perseguidos da ditadura militar que organizavam um “Manifesto pela democratização da USP” chamando-os de “autointitulados” e enaltecendo a “democracia na USP” .
Rodas denominou a morte do estudante de economia da USP, Felipe Ramos de Paiva, de “oportunidade” para aprovar um convênio com a PM de São Paulo, uma das polícias mais violentas do mundo. Na escalada de violência que se abriu desde então, autorizou uma invasão histórica da USP por forças militares, representadas, na ocasião, por mais de 400 homens da Tropa de Choque, PM, GATT, exército entre outros grupos e batalhões. Em um ato de desrespeito à memória da USP, autorizou uma invasão militar da moradia estudantil, o CRUSP, em pleno domingo de carnaval, no mesmo dia em que se completaram 44 anos da invasão do mesmo CRUSP pelo exército, ainda durante a ditadura. Mobilizando o código disciplinar de 1972, expulsou 6 estudantes e abriu processos disciplinares contra pelo menos mais 52. Está processando criminalmente a diretoria da Associação dos Docentes da USP por calúnia e, disciplinarmente, a diretoria do Sindicado dos Servidores da USP, o SINTUSP, pela organização de greves.
A simples enunciação dos principais atos da gestão Rodas gera perplexidade e indignação. Sua atuação insere-se, no entanto, numa cultura política e institucional extremamente autoritária e avessa ao espírito universitário. A liberdade de expressão e de pensamento, o direito de crítica e de manifestação e a sociabilidade de culturas diferentes, se fazem cada vez menos presente na USP.
Coletivo Estudantes da USP em defesa da educação pública
Postado no blog Carta Maior em 08/05/2012