Recebo muitos e-mails de pessoas que me estimula a escrever sobre a terrível crise de valores da atualidade.
Não escrevo.
Por uma razão: ela não existe da maneira como as pessoas acreditam que sim.
Resolvi publicar aqui um fragmento de belo livro “Metaforfoses da cultura liberal”, de Gilles Lipovestsky (Sulina), sobre o assunto.
É uma pedrada nos clichês sobre o fim da moral e o vale-tudo contemporâneo.
“Se o individualismo significava a paixão exclusiva pelo dinheiro e auto-absorção em si mesmo, como explicar essa aspiração à ética, à transparência? Como explicar que seres voltados para si possam ainda se indignar e demonstrar generosidade?
Não é verdade que o mundo neo-individualista seja equivalente de cinismo generalizado, de irresponsabilidade, de decadência geral dos valores. Dizem-nos: “Não resta nada”. Mas, ao mesmo tempo, nunca houve tanta preocupação com a proteção dos direitos da pessoa, por exemplo, nas organizações antirracistas, nem tanto cuidado com as crianças (veja-se a repercussão da questão da pedofilia).
O culto do presente domina, mas a preocupação com as futuras gerações não desaparece, como testemunha a sensibilidade ecológica. Apesar da cultura neo-individualista, os indivíduos continuam a exprimir indignação diante do que lhes parece escandaloso. As reações de indignação permanecem vivas: é a prova de que o senso moral não se extinguiu.
É verdade que a cultura do sacrifício, da devoção e da culpabilidade está deslegitimada, mas, ao mesmo tempo, o individualismo não significa o naufrágio do espírito de responsabilidade e de solidariedade. O fenômeno do voluntarismo é uma prova disso.
No momento em que os valores individualistas triunfam, o voluntariado, na França, ao menos, cresce. Há mais voluntários para ações humanitárias hoje que nos anos 1960. Existem, na França, seis milhões de voluntários e uma pessoa em cada quatro declara prestar trabalho voluntário. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, de 40 a 50% dos adultos participam de ações de voluntariado.
O apogeu do individualismo pós-moralista coincide, certamente, com a ascensão dos “prazeres privados” e das preocupações lancinantes do eu, mas, paradoxalmente, em paralelo com a vontade de ajuda mútua, sem obrigações, sem coerção, livremente, sem exigência de regularidade e disciplina.
Segunda observação: não se deve exagerar a ideia de que tenderíamos para o “relativismo dos valores”. O diagnóstico feito por Allan Bloom precisa ser nuançado. Não é verdade que não tenhamos mais uma visão comum, que todos os sistemas de valores sejam percebidos como equivalentes, que não sejamos mais capazes de falar com a menor convicção do bem e do mal. Basta ver a crueldade, a tortura, a escravidão, a pedofilia, o terrorismo, as violências físicas.
Todos esses comportamentos são radicalmente, em massa, rejeitados, até mesmo diabolizados. A ideia do mal não se evaporou na “aceitação de tudo”, na “grande abertura do espírito democrático”. Continua a existir um absoluto moral.
Quem hoje legitima a escravidão e as violências contra as crianças? Ou as excisões sexuais das meninas africanas?
Quem justifica a ordem de morte lançada contra Salman Rushdie? Ninguém. Ou quase. É evidente que nem todos os nossos referenciais morais desapareceram. Nossas sociedades não param de reafirmar um núcleo estável de valores partilhados. Não estamos no grau zero da moral: a fragmentação individualista dos valores e o relativismo pós-moderno têm limites.
Na realidade, vemos recompor-se uma forte consenso social em torno dos valores de base das nossas democracias: os Direitos do Homem, o respeito às liberdades e à individualidade, a tolerância, o pluralismo. A cultura individualista liberal é muito menos relativista e menos desorientada do que se diz.
Parece-me que houve, em outras épocas, uma crise de valores, pois a expressão consagrou-se, muito mais forte que a de hoje, especialmente na primeira metade do século XX. A democracia liberal foi então violentamente combatida pelas correntes marxistas; o humanismo dos Direitos do Homem, depreciado em nome do primado da luta de classes; os valores democráticos, pisoteados pelas correntes fascistas e nazistas.
Essa época passou.
Assistimos ao consenso dos Direitos do Homem, o que atenua, certamente, a dimensão da dita crise moral das nossas sociedades. A cultura pós-moralista não conclama mais os cidadãos a morrer pela pátria, mas, ao mesmo tempo, nunca a democracia teve uma aprovação tão profunda e geral. Tal é o paradoxo disso que chamo de “caos organizador”, típico da era pós-moralista.
Por tudo, a desestabilização individualista desenvolve-se tendo como fundo um tronco comum de valores mínimos e faz-se acompanhar de novas exigências éticas.
Acreditarmos que a intolerância só aumenta é, em parte, uma ilusão de ótica.
Quando reina o culto do ego, os valores de tolerância progridem; quando desaparecem as grandes obrigações e as ideologias heróicas, triunfa o ideal do respeito às diferenças e dos Direitos do Homem; quando os indivíduos voltam-se, cada vez mais, para si mesmos é que manifestam a maior alergia à violência sanguinária.
O pós-dever não significa o recuo do humanismo, mas a sua consagração social e histórica.
A própria expressão crise social é adequada? Podemos sustentar, de fato, que o pluralismo dos valores é a marca justamente de uma sociedade democrática liberal, de uma sociedade liberada do peso da tradição e da religião institucional.
Penso que não se deve deplorar nem combater esse pluralismo de doutrinas morais pois ele é a própria condição de um Estado liberal. Um Estado é liberal quando se organiza de tal maneira que seja respeitado o pluralismo das concepções do bem moral (Rawls). Para que as sociedades liberais se mantenham, não é necessário que todos partilhemos os mesmos valores, mas somente que sejam aceitos os valores mínimos da democracia e que o ethos prático da tolerância domine.
Numa democracia liberal, não está em jogo a regeneração moral dos cidadãos, mas somente a valorização das virtudes políticas necessárias à conservação de uma sociedade pluralista: tolerância, respeito mútuo, civilidade, espírito de cooperação.
(…)
Se é absurdo afirmar que não há mais moral, é bem verdade que percebemos uma fragmentação da moral e dos sistemas de valor. Testemunhamos uma inegável diversificação das concepções do bem. Esse “politeísmo de valores” nada tem de misterioso e faz parte da dinâmica da modernidade democrática confirmando a autonomia do indivíduo.
Com o recuo moderno das tradições, cada um passou a ter de determinar-se, de inventar a sua moral, como dizia Sartre.
Essa diversificação dos sistemas e essa individualização da moral podem ser vistas no tratamento das questões do aborto, do consumo de drogas, da pena de morte, da eutanásia, do casamento de homossexuais, das técnicas de fertilização com ajuda médica. Sobre todos esses pontos existem divergências entre os cidadãos. Separações maiores se impõem com o crescimento das seitas. Nas sociedades, há pluralidade moral, não niilismo moral.
Terceira observação. Os paradoxos da época pós-moralista não param aí.
De um lado, é verdade, nossas sociedades endeusam o prazer, a sexualidade, a satisfação do desejo, etc.
Por outro lado, contudo, elas são tudo menos sociedades entregues à orgia ou à anarquias sexuais.
Que vemos?
Nas últimas pesquisas francesas, os homens com mais de 25 anos declaram ter tido uma média entre 12 e 14 parceiras sexuais na vida; as mulheres, entre dois e cinco parceiros. Na média, nos doze meses anteriores, homens e mulheres confessam um só parceiro sexual. Estamos, portanto, muito longe da promiscuidade e da indisciplina sexuais. A superação da cultura moralista e do sacrifício, assim como a espiral dos direitos a uma vida livre, não conduz, como se diz em demasia, à decadência de todos os valores nem ao vale-tudo libidinal. Na realidade, a vida sexual continua a se dar dentro de limites precisos.
(…)
Precisamos voltar à questão central do individualismo. Por um lado, existe um declive, inegavelmente perigoso, que leva do individualismo ao “cada um por si”, ao culto do sucesso pessoal por qualquer meio, à negação dos valores morais, à delinquência. Todos esses fenômenos se vinculam ao que chamo de “individualismo irresponsável”, equivalente ao niilismo, ao “depois de mim, o dilúvio”. A cultura pós-moderna e pós-moralista, com sua valorização do dinheiro e da liberdade individual, estimula o movimento na direção do “primeiro eu”, na medida em que dissolve a força dos mandamentos éticos inflexíveis, a força das instâncias tradicionais da socialização. Essa cultura individualista cria um terreno mais permissivo à ultrapassagem das barreiras morais e tende a relativizar, banalizar e desculpabilizar certas fraudes. Isso parece evidente.
Mas não se destaca suficientemente uma outra inclinação do individualismo que coincide justamente com uma demanda e uma preocupação éticas. É o que chamo de individualismo responsável. Já dei alguns exemplos: a tolerância, a ecologia, o respeito pelas crianças, a exigência de limites, o voluntariado, a luta contra a corrupção, as comissões de ética.
Por toda parte, o individualismo, na cultura pós-sacrificial, desenvolve-se tomando duas formas radicalmente opostas: por um lado, aumento da busca dos limites legítimos a fixar à liberdade de cada um; por outro lado, aumento do esquecimento ou da negação do direito dos outros. As sociedades pós-moralistas produzem mais individualismo responsável, mas também mais individualismo irresponsável, mais autonomia razoável, mas também mais autonomia descontrolada e sem regras.
Nesse contexto, o que faz sentido hoje, não são mais os grandes projetos nem os grandes sacrifícios, mas o ideal de responsabilização humana, a ambição de fazer retroceder o individualismo irresponsável."
Postado no blog Juremir Machado da Silva no site Correio do Povo em 01/05/2012