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Vale tudo: a mulher careca e o desrespeito disfarçado de diversão




Não se falou em outra coisa desde ontem, ao menos nas redes sociais: Babi Rossi, a assistente de palco que teve seus cabelos raspados ao vivo em um programa humorístico. Algumas pessoas se divertiram, outras se indignaram, outras se indignaram com a indignação alheia. E, assim se estabeleceu aquele ciclo de opinião que já nos acostumamos a ver. formado e disseminado com argumentos bastante utilizados.


Um deles, simplista e rasteiro, menciona a medonha categoria das: “vagabundas ambiciosas que fazem tudo por dinheiro e mostram o corpo em qualquer lugar”. Também chamadas de “mulheres que não se valorizam”. É por ele – justamente por ser simplista e rasteiro – que começo.
Babi Rossi. Cena do programa "Pânico na Band" do dia 22/04/2012, Rede Bandeirantes.
O incômodo não é exatamente a mulher pelada. Não é a bunda, não são os peitos. Não precisa defender que as pessoas andem abotoadas até o pescoço e cobertas até os dedinhos dos pés e, nem obrigá-las a sair com porções generosas de corpo pra fora. O que incomoda é a pessoa que se “expõe”. Estou pegando ojeriza ao termo porque ele aparece com frequência nos discursos moralistas, do raivoso ao condescendente. Aquele “ai meu bem, você é tão bonita, devia se valorizar mais” ou“essa roupa não está à sua altura”.
A pessoa deixa de ser, aos olhos de seus críticos, corpo para ser carne. Vendida aos pedaços,“os peitos da Fulana”, “as coxas da Beltrana”, “adivinhe de quem é este bumbum”. Como dizem, tanto faz se a assistente de palco tem cabelo ou não, está lá a bunda.
“Foi combinado”, “ela se sujeitou a isso”, todos já tivemos essa conversa antes. A participação da moça no açoug… ops! programa, é expressão da liberdade ou da sujeição a um sistema de valores cretino, que bota preço (baixo, por sinal) em partes do corpo e prega etiquetas, em geral pouco lisonjeiras, todas com prazo de validade baixíssimo?  Se é combinado e a “atração” não topa participar ela vai dar a lugar a outra na fila, que sabemos que anda bem rápido. E ninguém quer perder a vez. Já fiquei em emprego ruim porque precisava dele e, não vamos aqui hierarquizar ou classificar ocupações, porque elas atendem a várias necessidades humanas. Dinheiro, vaidade, aceitação, prestígio, realização pessoal, não vou estabelecer o que vale mais, você vai?
gravura francesa do século XIX, “La Belle Hottentot”
Se a moça concordou, então vale tudo? Vale virar piada, vale comer barata, vale degustar olho de cabra e milkshake de minhoca? Percebam como é antiga essa discussão e como ainda não deixamos de ter sushis eróticos metafóricos nas nossas telas. Ainda somos brindados por cenas grotescas e violentas veiculadas por canais de televisão abertos, concessões públicas. Fica patente então que para essas pessoas, agraciadas com o nada modesto direito de tocar um canal de televisão efaturar com isso, a televisão pública é uma piada e seu público é palhaço.
Se não foi combinado, então o que dizer? “Ela estava lá mesmo, estava sujeita a isso estando no programa”, “ela merece, essas moças são vagabundas loucas pra aparecer”, “o pessoal curte assistir então eles mostram na TV, oras”. Fica difícil, na verdade, defender de forma consistente o “entretenimento” de natureza aviltante, sobretudo esse que já se tornou um clássico dominical: a exposição da mulher como entretenimento “para a família” e quase nunca como a produtora do entretenimento. É disso que se trata, diversão aviltante, porque se não é indigna para a pessoa em frente às câmeras, certamente o é para quem está em frente à tela. As pessoas estão sendo chamadas de imbecis pelos profissionais que ganham (muito) dinheiro para “divertir” a audiência e se preocupam com a mulher pelada na televisão, “olha só que indecente, que pouca vergonha esse bando de vadia sem roupa!”.
Acho significativo que esse tipo de coisa aconteça tendo uma mulher como personagem principal. Outro homem teve seu cabelo raspado no mesmo programa, mas não riu de nervoso. A moça vive da aparência dela e foi tosquiada sob gargalhadas e interjeições como “que horror!”. Diferente da mulher que raspa seu cabelo em casa, voluntariamente, ou da mulher que raspa seus cabelos em função de uma quimioterapia. Sobretudo no segundo caso, essa pessoa não vai ouvir gargalhadas em volta em meio ao barulho da maquininha, não vai ser comparada ao Predador.



Chegue a 1:20 minuto no vídeo e veja se a moça acha graça de verdade. “Ela tem o espírito do programa, é muito corajosa”, repete o apresentador galhofeiro. No momento 2:30 minutos, a moça chora. Assobios, gritos, gargalhadas. A partir de 4:07 minutos, um apresentador raspa a cabeça com ar contrariado, que também pode ser falso, mas as risadas da trupe só recomeçam depois que anunciam que a moça vai se ver no espelho após o intervalo comercial.
Ao longo da História os cabelos raspados têm um simbolismo pouco positivo, de modo geral. Isso se acentua mais ainda quando os cabelos são femininos. Mulheres adúlteras tinham sua cabeça raspada, loucos, doentes e prisioneir@s também, assim como amantes de soldados alemães na Segunda Guerra Mundial.
A cabeça raspada significava a infâmia, o escárnio, a vergonha. Muitas bruxas eram retratadas carecas e as mulheres acusadas desse crime também tinham seus cabelos cortados. Os cabelos são a característica identificadora da pessoa. Raspá-los significa privá-la de parte da sua identidade, nivelar, igualar a outras. Quando o ato não é voluntário, o golpe para a auto-estima pode ser alto. Em ‘O Primo Basílio’, romance de Eça de Queirós, Luísa tem seus longos cabelos raspados em função de uma doença e a cena descreve o sofrimento de Jorge, o marido, a cada tesourada. Quando Luísa acorda do torpor, o diálogo é o seguinte:
— Cortaram-me o cabelo… — murmurou tristemente.
— É para te fazer bem — disse-lhe Jorge, quase tão agonizante como ela. — Cresce logo. Até te vem melhor.
Ela não respondeu; duas lágrimas silenciosas correram-lhe pelos cantos dos olhos.

Anúncio de exibição de Saartjie Baartman, século XVIII.

Saartjie Baartman nasceu em uma aldeia sul-africana, por volta da década de 1780. Órfã, tornou-se escrava de fazendeiros holandeses. Em 1810, viajou para a Inglaterra, depois de ser convencida de que ficaria rica se apresentando às pessoas interessadas em conhecerem-na. Ela foi chamada de “Vênus Hotentote” e mostrada em feiras,freakshows, para uma audiência escandalizada com suas características físicas incomuns naquele contexto: o grande acúmulo de gordura em suas nádegas (uma condição chamada de esteatopigia) e o tamanho de seus pequenos lábios, bastante visíveis, como se fosse um “avental” escondendo a vulva.
Aparentemente ela não permitia que seus órgãos genitais fossem vistos, e utilizava um tecido cobrindo a região, mas a visão de seu corpo evocava um misto de espanto, indignação e aludia a supostas características sexuais. Não era à toa o apelido pelo qual ficou conhecida. Sociedades abolicionistas se manifestaram contra seu aprisionamento e exibição. Alguns argumentos eram que, em meio à proibição da escravidão, ela era considerada uma posse. Outros afirmavam que as exibições degradantes (nas quais ela deveria se movimentar, andar, sentar, levantar conforme lhe fosse solicitado), que ocorriam com seu consentimento, haviam sido obtidas sob coação.
Saartjie foi vendida a um francês e exibida em condições piores na França, pagando uma quantia extra os visitantes podiam tocá-la. Ela foi estudada e retratada por cientistas e pintores. Quando o interesse de visitantes e estudiosos diminuiu, tornou-se alcoólatra e se prostituiu, morrendo em 1815 de pneumonia, varíola ou sífilis. Seu cérebro e seus genitais foram conservados e exibidos (!!!) no Museu do Homem em Paris até 1974. Em 1994, o presidente sul-africano Nelson Mandela, solicitou ao governo francês que os restos mortais de Saartjie fossem repatriados. O pedido foi atendido somente em 2002. Seu nome foi dado a umcentro de apoio a mulheres e crianças vítimas de violência.
O caso de Saartjie tornou-se icônico por resumir a um só tempo a condição da população escrava, dos negros, dos povos colonizados, dos africanos e das mulheres. A Panicat Babi Rossi não é a nova Saartjie. Tem muito mais poder de escolha que a jovem sul-africana jamais teve, mas mais de duzentos anos as separam e o corpo feminino continua sendo alvo de controle, escárnio e condenação.
[+] Meus dois tostões sobre a panicat por Marjorie Rodrigues.
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Agradeço a Triana Ballesta, Liliane Gusmão, Camila Gläser, André Taffarello e Talita R. da Silva pela leitura e pelos comentários do texto. Agradeço também a tod@s debatedor@s da lista pelas observações a respeito do infame caso dos cabelos raspados.

Deh Capella

Sou bibliotecária, mãe, feminista, leitora, musical, curiosa. Baby, we were born to run.




Postado no blog Blogueiras Feministas em 24/04/2012