É no copo meio cheio que encontramos força e sentido. Priorizar o lamento é torturar a si mesmo
Larissa Bitar
Celular não carrega. Testo cinco tomadas diferentes. Viro de cabeça para baixo, bato na mesa, peço ajuda aos deuses que não estão ocupados com a guerra na Síria e os hospitais infantis. Resmungo. Tento mais cinco tomadas. Mas o infeliz está morto — assim como meu humor. A assistência técnica fica a 35 km, tenho que escrever o texto da semana, não possuo computador, preciso falar com minha mãe, quero olhar o Instagram e bater meu recorde no Candy Crush. Em ímpeto movido pela inabilidade de administrar imprevistos vou ao supermercado mais próximo — desses que oferecem queijo brie, cadeiras de praia e eletrodomésticos — e compro um aparelho novo. Despesa extra. Péssimo dia!
Foram longas horas destinadas a maldizer o celular pifado, mas nenhuma dedicada à satisfação de ter o problema solucionado. Foi testa franzida e dentes rangidos em protesto contra o gasto inesperado, mas zero sorriso em agradecimento pelo privilégio de poder imediatamente adquirir o novo objeto. Foi mais uma vez o espírito mimado, volúvel aos inevitáveis contratempos cotidianos, reagindo com furor às contrariedades e ignorando, solenemente, a parcela positiva da vida.
Era só um celular sem importância em um dia comum. Às vezes é o pneu do carro, outras o atraso do médico, a briga conjugal, a conta estourada e a dor na coluna. E como não torcer o nariz? É legítima a vontade de jogar o sapato na parede, de fechar os vidros do carro e gritar um palavrão, de abraçar o travesseiro em noites cinzas nas quais o peito só quer descansar em silêncio. Pretender exterminar dores e irritações é negar a própria condição humana, é render-se à descaradamente utópica ideia de que felicidade é questão de boa vontade. Há que ser equilibrista na corda bamba que alterna bem estar e dissabores. No entanto, eleger lamentos como muleta é atirar no próprio pé enquanto segue a travessia.
Sempre tive um pouco de resistência aos que acordam cantando e gargalham sem motivo. Olhava com desconfiança para aquela criatura que parecia brotar de um musical da Disney em plena segunda-feira de trânsito pesado e boletos atrasados. Apostava comigo mesma que mais cedo ou mais tarde os passarinhos verdes haveriam de ceder espaço ao Demônio da Tasmânia que mora em cada um de nós e a hashtag “gratidão” daria lugar a indiretas amargas no Facebook. Até que entendi que, com exceção de alguns poucos que forjam positividade para alimentar vaidades, há um número enorme de pessoas ensinando genuinamente as vantagens de enxergar o mundo com olhos mais otimistas.
É o velho e pertinente clichê que nos provoca a olhar o copo meio cheio e abrir mão do vício emocional de asfixiar bons momentos com doses cavalares de reclamações. Uma espécie de convite para percebermos na cama quente, na casa segura, no filho saudável e na comida farta algo maior que mera trivialidade. Não é fácil (e como eu sei) romper com os murmúrios que direcionam o holofote para a falta. Não é fácil reconciliar-se consigo na decisão de dar ênfase à fatia próspera da vida, na qual residem força e sentido para seguirmos adiante. Porém, é necessário jogar no ralo o veneno da lamúria e nutrir a alma reconhecendo as alegrias que nos dão sustentação. Em cada dádiva aparentemente banal está a possibilidade de suportar com semblante leve percalços incômodos.
Quatro dias após a compra do novo celular (já devidamente lançada na fatura do cartão de crédito), resolvi tentar carregar o antigo, por simples curiosidade. Funcionou. Xinguei baixinho… com um discreto e inusitado riso no canto da boca.
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