Dufour: quem virá depois do liberalismo
Dufour não perde a mira
O Conversa
Afiada republica
entrevista na Carta
Maior com o
filósofo francês Dany-Robert Dufour, sobre seu novo livro “O indivíduo que vem
depois do liberalismo”.
Dufour é autor também de “O Divino Mercado” e “A arte de reduzir as cabeças”, sempre dirigidos à crítica do liberalismo, ou “a grande narrativa” “sem saída” dos nossos tempos.
À Carta Maior:
Dufour é autor também de “O Divino Mercado” e “A arte de reduzir as cabeças”, sempre dirigidos à crítica do liberalismo, ou “a grande narrativa” “sem saída” dos nossos tempos.
À Carta Maior:
Contra o
estrago do liberalismo, recuperar o Marx filósofo
O filósofo francês Dany-Robert Dufour
refletiu sobre as mutações que esvaziaram o sujeito contemporâneo de relatos
fundadores. Essa ausência é, para ele, um dos elementos da imoralidade liberal
que rege o mundo hoje. Seu trabalho como filósofo crítico do liberalismo
culmina agora em um livro que pergunta: que indivíduo surgirá depois do
liberalismo? Talvez seja o caso, defende, de recuperar o Marx filósofo, que
defendia a realização total do indivíduo fora dos circuitos mercantis.
Eduardo Febbro – Direto de Paris
Alguns já o veem terminado,
outros a ponto de cair no abismo, ou em pleno ocaso, ou em vias de extinção.
Outros analistas estimam o contrário e afirmam que, embora o liberalismo esteja
atravessando uma série crise, seu modelo está muito longe do fim. Apesar das
crises e de suas consequências, o liberalismo segue de pé, produzindo seu lote
insensato de lucros e desigualdades, suas políticas de ajuste, sua
irrenunciável impunidade. No entanto, ainda que siga vivo, a crise expôs como
nunca seus mecanismos perversos e, sobretudo, colocou no centro da cena não já
o sistema econômico no qual se articula, mas sim o tipo de indivíduo que o
neoliberalismo terminou por criar: hedonista, egoísta, consumista, frívolo,
obcecado pelos objetos e pela imagem fashion que emana dele.
A trilogia da modernidade liberal é muito
simples: produzir, consumir, enriquecer. O filósofo francês Dany-Robert Dufour
refletiu sobre as mutações pós-modernas que esvaziaram o sujeito contemporâneo
de relatos fundadores. Essa ausência é, para o filósofo, um dos elementos da
imoralidade liberal que rege o mundo contemporâneo. Seu trabalho como filósofo
crítico do liberalismo se desenvolveu em livros como “Le Divin Marché” (O
Divino Mercado) e culmina agora em um apaixonante livro – “O indivíduo que vem
… depois do liberalismo”, editora Denoel, Paris, 2011 -, que faz uma pergunta
que poucos fazem: como será o indivíduo que surgirá depois do liberalismo?
Dany-Robert Dufour não só lança mais uma
diatribe sobre o sistema liberal, mas explora os conteúdos sobre os quais pode
se refundar a humanidade depois desse pugilato planetário do despojo e da
estafa que é o ultra-liberalismo. Mas, a humanidade não se funda no automatismo
e, sim através dos indivíduos. Seu livro, “L’individu qui vient…après le
libéralisme” , explora o transtorno liberal do passado e esboça os
contornos de um novo indivíduo ao qual o filósofo define como “simpático”, ou
seja, aberto aos outros que também o constituem.
O liberalismo, que se apresentou como salvador da humanidade,
terminou levando a o ser um humano a um caminho sem saída. Você considera o fim
desse modelo e se pergunta sobre qual tipo de ser humano surgirá depois do
ultra-liberalismo?
Dany-Robert Dufour: No século passado
conhecemos dois grandes caminhos sem saída históricos: o nazismo e o
stalinismo. De alguma maneira e entre aspas, depois da Segunda Guerra Mundial
fomos liberados desses dois caminhos sem saída pelo liberalismo. Mas essa
liberação terminou sendo uma nova alienação. Em suas formas atuais, ou seja,
ultra e neoliberal, o liberalismo se plasma como um novo totalitarismo porque
pretende gerir o conjunto das relações sociais. Nada deve escapar à ditadura
dos mercados e isso converte o liberalismo em um novo totalitarismo que segue
os dois anteriores. É então um novo caminho sem saída histórico. O liberalismo
explorou o ser humano.
O historiador húngaro Karl Polanyi, em um
livro publicado depois da Segunda Guerra Mundial, demonstrou como, antes, a economia
estava incluída em uma série de relações sociais, políticas, culturais
etc. Mas, com a irrupção do liberalismo, a economia saiu desse círculo de
relações para converter-se no ente que procurou dominar todos os demais. Dessa
forma, todas as economias humanas caem sob a lei liberal, ou seja, a lei do
proveito onde tudo deve ser rentável, incluindo as atividades que antes não
estavam sob o mandato do rentável.
Por exemplo, neste momento eu e você
estamos conversando, mas não buscamos rentabilidade e, sim, a produção de
sentido. Neste momento estamos em uma economia discursiva. Mas hoje, até a
economia discursiva está sujeita ao “quem ganha mais”. Cada uma das economias
humanas está sob a mesma lógica: a economia psíquica, a economia simbólica, a
economia política, daí o derretimento da política. O político só existe hoje
para seguir o econômico. A crise que atravessa a Europa mostra que, quanto mais
ela se aprofunda, mais a política deixa a gestão nas mãos da economia. A
política abdicou ante a economia e esta tomou o poder. Os circuitos econômicos
e financeiros se apoderaram da política, A crise é, por conseguinte, geral.
O título de seu livro, “O homem que vem depois do liberalismo”,
implica a dupla ideia de uma fase triunfal e de um fim do liberalismo…
DRD: Paradoxalmente, no momento de seu
triunfo absoluto o liberalismo dá sinais de cansaço. Nos damos conta de que
nada funciona e as pessoas vão tomando consciência desta falha e têm uma reação
de incredulidade. Os mercados se propuseram a ser uma espécie de remédio para
todos os males. Você tem um problema? Pois então recorra ao Mercado e este
aportará a riqueza absoluta e a solução dos problemas. Mas agora nos damos
conta de que o mercado acarreta devastações.
Assim, vemos como esse remédio que devia
nos fornecer a riqueza infinita não traz senão miséria, pobreza, devastação. O
capitalismo produz riqueza global, sim, mas ela é pessimamente repartida.
Sabemos que há 20, 30 anos, as desigualdades têm aumentado pelo planeta. A
riqueza global do capitalismo despoja de seus direitos a milhões de indivíduos:
os direitos sociais, o direito à educação, à saúde, em suma, todos esses
direitos conquistados com as lutas sociais estão sendo tragados pelo
liberalismo. O liberalismo foi como uma religião cheia de promessas. Nos
prometeu a riqueza infinita graças a seu operador, o Divino Mercado. Mas não
cumpriu a promessa.
Em sua crítica filosófica ao liberalismo, você destaca um dos
principais estragos produzidos pelo pensamento liberal: os indivíduos estão
submetidos aos objetos, não aos seus semelhantes, ao outro. A relação em si, a
sensualidade, foi substituída pelo objeto.
DRD: As relações entre os indivíduos passam
ao segundo plano. O primeiro é ocupado pela relação com o objeto. Essa é a
lógica do mercado: o mercado pode a cada momento agitar diante de nós o objeto
capaz de satisfazer todos nossos apetites. Pode ser um objeto manufaturado, um
serviço e até um fantasma construído pelas indústrias culturais. Estamos em um
sistema de relações que privilegia o objeto antes do sujeito. Isso cria uma
nova alienação, uma espécie de vício com os objetos. Esse novo totalitarismo
que é o liberalismo coloca nas mãos dos indivíduos os elementos para que se
oprimam a si mesmos através dos objetos. O liberalismo nos deixa a liberdade de
alienarmos a nós mesmos.
Você situa o princípio da crise nos anos 80 através da
restauração do que você chama de a narrativa de Adam Smith. Você cita uma de
suas frases mais espantosas: para escravizar um homem é preciso dirigir-se ao
seu egoísmo e não a sua humanidade.
DRD: Adam Smith remonta ao século XVIII e
sua moral egoísta se expandiu um século e meio depois com a globalização do
mercado no mundo. De fato, Smith demorou tanto porque houve outra mensagem
paralela, outro Século das Luzes, que foi o do transcendentalismo alemão.
Ao contrário das Luzes de Smith, as alemãs
propunham a regulação moral, a regulação transcendental. Essa regulação podia
se manifestar na vida prática através da construção de formas como as do Estado
a fim de regular os interesses privados. A partir do Século das Luzes, há duas
forças que se manifestam: Adam Smith e Kant. Esses dois campos filosóficos
coexistiram de maneira conflitiva ao longo da modernidade, ou seja, através de
dois séculos. Mas, em um determinado momento, o transcendentalismo alemão
perdeu força e deu lugar ao liberalismo inglês, o qual adquiriu uma forma
ultra-liberal. Pode-se datar esse fenômeno a partir do início dos anos 80. Há
inclusive uma marca histórica que remonta ao momento em que Ronald Reagan ,
nos Estados Unidos, e Margaret Thatcher, na Grã-Bretanha, chegam ao poder a
instalam a liberdade econômica sem regulação. Essa ausência de regulação
destruiu imediatamente as convenções sociais, ou seja, os pactos entre
indivíduos.
Daí provém a trilogia “produzir, consumir, enriquecer”. Você
chama essa trilogia de pleonexía.
DRD: O termo “pleonexía” é encontrado na
República de Platão e quer dizer “sempre ter mais. A República grega, a Polis,
foi construída sobre a proibição da pleonexía. Pode-se dizer então que, até o
século XVIII, toda uma parte do Ocidente funcionou com base nessa proibição e
se liberou dela nos anos 80. A
partir daí se liberou a avidez mundial, a avidez dos mercados e dos banqueiros.
Lembre o discurso pronunciado por Alan Greenspan (ex-presidente da Reserva
Federal dos Estados Unidos) ante à Comissão norteamericana depois da crise de
2008. Greenspan disse: “pensava que a avidez dos banqueiros era a melhor
regulação possível. Agora, me dou conta de que isso não funciona mais e não sei
por quê”. Greenspan confessou assim que o que dirige as coisas é a liberação da
pleonexía. E já sabemos para onde isso conduz.
Chegamos agora ao depois, ao hipotético ser humano de depois do
liberalismo. Você o enxerga sob os traços de um indivíduo simpático. Que
sentido tem o termo simpático neste contexto?
DRD: Ninguém é bom ao nascer como pensava
Rousseau, nem tampouco mau como pensava Hobbes. O que podemos fazer é ajudar as
pessoas a serem simpáticas, ou seja, a não pensarem somente em si mesmas e a
pensarem que, para viver com o próximo, é preciso contar com ele. O outro está
em mim, as imagens dos outros estão em mim e me constituem como sujeito. A
própria ideia de um indivíduo egoísta é sem sentido porque isso obriga a que
nos esquecer de que o indivíduo está constituído por partes do outro. E quando
falo de um indivíduo simpático não emprego o termo em sua acepção mais comum,
alguém simplesmente simpático, digamos. Não, trata-se do sentido que a palavra
tinha no século XVIII, onde a simpatia era a presença do outro em mim. Necessito
então da presença do outro em mim e o outro precisa de minha presença nele para
que possamos constituir um espaço onde cada um seja um indivíduo aberto ao
outro. Eu cuido do outro como o outro cuida de mim. Isso é um indivíduo
simpático.
Sigamos com a simpatia, mas sobre que bases se constrói o
indivíduo que vem depois do liberalismo? A razão, a religião, o esporte, o
ócio, a solidariedade, outra ideia de mercado?
DRD: Neste livro fiz um inventário sobre as
narrativas: a narrativa do logos, da evasão da alma dos gregos, a narrativa
sobre a consideração do outro nos monoteísmos. Dei-me conta de que em ambas
narrativas havia coisas interessantes e também aterradoras. Por exemplo, a
opressão das mulheres no patriarcado monoteísta equivale à opressão da metade
da humanidade. Por acaso queremos repetir essa experiência? Certamente que não.
Outro exemplo: no logos, para que haja uma
classe de homens livres na sociedade é preciso que haja uma classe oprimida e
escravizada. Queremos repetir isso? Não. Refundar nossa civilização após os
três caminhos sem saída que foram o nazismo, o estalinismo e o liberalismo
requer uma refundação sobre bases sólidas. Por isso realizei o inventário, para
ver o que podíamos recuperar e o que não, quando do passado podia nos servir e
quanto não. A segunda consideração diz respeito aquilo que poderia ajudar o
indivíduo a ser simpático, ao invés de egoísta. Neste contexto, a ideia da
reconstrução do político, de uma nova forma do Estado que não esteja dedicado a
conservar os interesses econômicos, mas sim a preservar os interesses
coletivos, é central.
Qual é, então, a grande narrativa que poderia nos salvar?
DRD: Deixamos no caminho as grandes
narrativas de antes e acreditamos cada vez menos na grande narrativa do
mercado. Estamos à espera de algo que una o indivíduo, ou seja, uma grande
narrativa. Eu proponho a narrativa de um indivíduo que deixou de ser egoísta,
que não seja tampouco o indivíduo coletivo do estalinismo, nem tampouco o indivíduo
mergulhado na ideia de uma raça que se crê superior, como no nazismo e no
fascismo. Trata-se de um a narrativa alternativa a tudo isso, uma narrativa que
persiste no fundo da civilização.
Creio que o valor da civilização Ocidental
se radica no fato de ter colocado o acento na individualização, ou seja, na
ideia da criação de um indivíduo capaz de pensar e agir por si mesmo. Não é
para esquecer a noção de indivíduo, mas sim reconstruí-la. Contrariamente ao
que se diz, não creio que nossas sociedades sejam individualistas, não. Nossas
sociedades são lamentavelmente egoístas. Isso me faz pensar que há muita margem
de existência ao indivíduo como tal, que há muitas coisas dele que não
conhecemos.
Temos que fazer o indivíduo existir fora
dos valores do mercado. O indivíduo do estalinismo foi dissolvido na massa do
coletivismo; o indivíduo do nazismo e do fascismo foi dissolvido na raça, o
indivíduo do liberalismo foi dissolvido no egoísmo. O indivíduo liberal é um
escravo de suas paixões e de suas pulsões. Devemos nos elevar desse caminho sem
saída liberal parar recriar um indivíduo aberto ao outro, capaz de realizar-se
totalmente.
Há textos filosóficos de Karl Marx que não
são muito conhecidos e nos quais Marx queria a realização total do indivíduo
fora dos circuitos mercantis: no amor, na relação com os outros, na amizade, na
arte. Poder criar o máximo a partir das disposições de cada um. Talvez seja o
caso de recuperar essa narrativa do Marx filósofo e esquecer o do Marx
marxista.
Tradução: Katarina Peixoto
Obs: Trechos do texto grifados por mim.
Postado no Blog Conversa Afiada em 08/01/2012