Eduardo Leite, eleitor de Jair Bolsonaro, escolheu a barbárie. Não há entrevista ou disfarce que consiga apagar este fato.
Fernando Nicolazzi (*)
Nos últimos tempos, temos notado no Brasil uma curiosa situação: muitas das pessoas que foram responsáveis por nos colocar nesta embarcação que afunda de forma tão vertiginosa têm vindo a público para avisar que já colocaram seus coletes de flutuação, entraram nos botes salva-vidas e remam em busca de alguma ilhota com praias calmas, palmeiras verdejantes, tucanos voando alegremente e, claro, um serviço de hotelaria adequado aos seus requintados gostos de consumo.
Mostram, sem nenhum constrangimento, que simplesmente abandonaram um barco onde fizeram questão de entrar vestindo suas melhores roupas e no qual forçaram que tantas outras pessoas entrassem à revelia. Alguns, inclusive, assim o fizeram trajando as mesmas vestes do capitão que escolheram para controlar o navio, capitão este que não faz a menor ideia nem de onde fica a cabine de comando, quanto mais para onde navegar. Agora, entre uma remada e outra, olham à distância o navio fazendo água, fingindo que nada têm a ver com esse espetáculo trágico e devastador.
Mas vou fazer aqui um esforço que talvez seja desagradável para muitas dessas pessoas, um esforço para avivar uma memória que não pode jamais ser apagada. Alguém certa vez sugeriu que a função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela teima em esquecer. Pois, na condição de historiador, e diante da inoportuna teimosia em disfarçar o que ocorreu, trarei aqui uma lembrança que explica em grande medida as causas do naufrágio.
O título deste texto já evidencia uma das lembranças que não podem ser esquecidas: Eduardo Leite, eleitor de Bolsonaro. É verdade que o próprio governador não recusa este fato. Mas não é menos verdade que, hoje, tenta colocar sobre ele disfarces dos mais inusitados. O último deles foi postado em sua conta de Twitter, no último dia 7 de agosto, quando sugeriu que, nem de direita, nem de esquerda, ele era simplesmente… Eduardo Leite. Ou melhor, conforme o ponto de vista, era ao mesmo tempo de direita e de esquerda, embora considerasse essa uma régua ultrapassada. Salientou também que a posição de centro por ele assumida seria aquela que, sem deixar de afirmar uma posição, concilia convicções firmes e respeito às diferenças. Vejamos, pois, de que convicções se trata e que diferenças realmente merecem respeito.
Eduardo Leite é um jovem político liberal que não viu problemas em apoiar um candidato de extrema-direita, cuja personalidade podia, muito antes da eleição, ser compreendida pelos seus traços notoriamente fascistas. Aliás, nada mais comum no Brasil do que “centristas” liberais, que são, na verdade, invariavelmente de direita, servindo de base para movimentos autoritários. Mas gostaria de pontuar duas outras intervenções públicas do governador que ainda fazem seu nome estar tão intimamente ligado ao de Jair Bolsonaro, colocando em xeque essa propalada posição de centro que ele assume.
Em julho de 2020, durante o programa Roda Viva, Leite foi indagado a respeito de seu voto para presidente dois anos antes. Sua resposta foi contundente: “não tenho arrependimento”. Já caminhávamos para a metade do mandato presidencial, a pandemia dava sinais claros da sua gravidade ao mesmo tempo em que era negada pelo presidente, cuja envolvimento familiar em esquemas antigos de corrupção se tornava cada vez mais conhecido, e Bolsonaro, como não poderia deixar de ser, demonstrava cotidianamente sua índole violenta, mentirosa e profundamente antidemocrática.
Ainda assim, diante de tudo que se passava no país, Eduardo Leite não estava arrependido. Em suas palavras, referindo-se às eleições de 2018, “para aquelas circunstâncias, naquela situação, acho que seria muito ruim naquele momento um retorno do PT ao poder”. Complementou em seguida, demonstrando sua firme convicção: “você escolhe um caminho em relação a outro”. Diante de um provável risinho cúmplice da jornalista Vera Magalhães, Leite tentava explicar sua posição que, mais do que partidária de Bolsonaro, era contrária ao PT, partido que encarnava a diferença que não merecia seu respeito. Ou seja, sua postura política não era amparada por um princípio afirmativo, mas tão somente por uma atitude de negação. Algo que ele próprio demonstrou quando declarou seu voto ainda em 2018.
O primeiro turno havia recém acabado e Leite, buscando aproximar-se do eleitorado de Bolsonaro, lançou um vídeo em que declarava voto no candidato da extrema-direita. Logo no início, a mesma postura de negação: “digo com todas as letras: o PT não”. Pouco depois, confessou sua escolha: “para evitar a volta do PT, eu vou dar o meu voto ao candidato Bolsonaro”. Para ele, seria algo próximo a “perder a alma” caso escolhesse o professor e ex-ministro da educação Fernando Haddad para comandar o poder executivo do país. Preferiu ficar com aquele sabidamente envolvido com milícias cariocas.
A escolha consciente e voluntária de Eduardo Leite pelo autoritarismo ganhava ainda uma significativa razão: sem “arredar pé dos meus princípios e dos meus valores”, disse ele, “eu defendo uma política feita com amor, não com o ódio”. Não custa lembrar: Bolsonaro era conhecido por defender torturador, sugerir metralhar adversários, ameaçar estuprar uma mulher (desde que fosse bonita), agredir uma colega parlamentar, homenagear milicianos, cometer atos de racismo e homofobia… eis a política feita com amor que Leite escolheu a partir de seus princípios e de seus valores. Eis o voto do qual ele não se arrependeu quase dois anos depois.
Mas o vídeo é ainda mais instrutivo, pois deixa evidente o profundo desprezo que o então candidato ao Piratini manifestava em relação ao público, subestimando a capacidade dos eleitores de notar a hipocrisia daquele que lhes pedia votos. Leite afirmou: “se é para fazer política do contra, que seja contra a miséria, contra o autoritarismo, contra a ditadura, contra a corrupção, contra os privilégios, contra as negociatas, contra o poder pelo poder, contra aqueles que fazem qualquer coisa pelo voto”.
O sujeito que disse tudo isso votou justamente no candidato mais autoritário entre todos, exaltador da ditadura, que empregava funcionários fantasmas em seu gabinete parlamentar, sonegador de imposto confesso e defensor de privilégios para os militares. O sujeito que enunciou tais palavras, podendo escolher um projeto político que de fato combateu a miséria no país, escolheu um esquema de governo que não oferecia nada mais do que a simples destruição de tudo (“é preciso acabar com isso daí, tá ok?”). O mesmo sujeito que se diz de “centro” e não conseguindo justificar de outra forma sua escolha pelo autoritarismo, simplesmente afirmou que votaria contra o PT.
A hipocrisia das suas palavras era tamanha que Leite sugeriu ser possível “ter lado, sem querer destruir quem não pensa como eu”, ao mesmo tempo em que declarava voto naquele que achava que era preciso uma guerra civil e matar umas 30.000 pessoas para resolver os problemas do país. “Quero discutir propostas, visão de futuro e um jeito diferente de fazer campanha e de governar”, disse ainda, defendendo a candidatura daquele que fugiu dos debates, não apresentou propostas e cuja visão de futuro era tão somente uma perspectiva de violência e morte. Eis o lado do “centro”.
Para alguns, o segundo turno da eleição presidencial de 2018 foi uma escolha difícil quando, na realidade, para eles sequer havia escolha possível a se fazer. Pois quando a decisão entre democracia e barbárie se torna um impasse ou uma dúvida, é porque a barbárie já venceu. Eduardo Leite, eleitor de Jair Bolsonaro, escolheu a barbárie. Não há disfarce ou entrevista para Pedro Bial que consiga apagar este fato indelével que permanecerá para sempre em sua história de vida e do qual sempre será lembrado. A história certamente não julgará absolutamente nada nem ninguém, mas alguns historiadores jamais deixarão isso cair no esquecimento.
Aquele voto no pior dos candidatos foi, sobretudo, um voto carregado de ódio. Ódio contra o PT, ódio contra a esquerda, mas também, em certa medida, ódio contra a democracia, pois Bolsonaro odeia com todas as suas forças qualquer princípio democrático. Não há democracia que resista quando as decisões políticas são tomadas única e exclusivamente pelo ódio e pelo ressentimento.
Eduardo Leite não escolheu a melhor proposta de governo, não selecionou o projeto de país mais justo, já que nada disso foi apresentado ou debatido por Jair Bolsonaro. Sua decisão foi amparada apenas pela recusa e pela negação de “quem não quer o PT”, buscando com isso tão somente angariar os votos extremistas e não discutir ideias. Em outras palavras, foi uma escolha oportunista e imatura, justamente quando mais precisávamos de política responsável para barrar a ascensão de um projeto miliciano de poder. Quando se perguntarem por que naufragamos, a reposta certamente passa por aí.
É provável que o bote salva-vidas em que está agora dê a Eduardo Leite uma sensação de conforto e tranquilidade, mesmo que em sua volta milhares de corpos flutuem já sem vida. É provável também que, a cada vez que o governador olhar a embarcação afundando, esquecerá da parte de responsabilidade que tem neste naufrágio. Não será tão fácil. Essa tarefa desagradável de lembrar aquilo que se teima em esquecer ou disfarçar, é também a lembrança de que hoje, antes de qualquer outra aventura eleitoral, Eduardo Leite, arrependido ou não, deve desculpas à população brasileira.
(*) Historiador
Eduardo Figueiredo Cavalheiro Leite é um bacharel em Direito e político brasileiro. Filiado ao PSDB é o atual governador do Rio Grande do Sul, cargo que exerce desde janeiro de 2019. Anteriormente, foi prefeito de Pelotas de 2013 a 2017.