Nikelen Witter
Basta falar em unidade nacional e logo o povo pensa em futebol. Pensa certo, claro. Mas não chega a ser uma unanimidade. Pasme você, amante do futebol, mas há quem não goste! Um horror! Mas é verdade.
E, também, há quem não goste de carnaval. Eu sei o que o leitor que não é ruim da cabeça nem doente do pé está pensando: “gente sem noção” (deve também estar balançando a cabeça em negativas assombradas).
Pois é. Contudo, de fato, é tanta gente, que atualmente já não se pode citar o carnaval como elemento de unidade nacional de forma alguma.
Então, voltamos a velha busca do que faz do Brasil, Brasil e de nós os brasileiros.
Alguns buscam no esporte, outros na música, outros em algum tipo de comportamento, como o “jeitinho”, por exemplo. De minha parte, cada vez mais tenho achado que nossa unidade nacional se constitui na mesa.
Estudando a História da Alimentação no Brasil fica difícil não acreditar e aceitar que somos, antes de tudo, o país do arroz com feijão. Se um dia superarmos todas as fomes que nosso povo passa, será isso que emergirá: essa cultura de uma comida básica, que serve a todos e se aprende na infância.
Outro ponto de unidade e que tem se revelado a mim em estudos, em viagens, no contato com amigos e no contato com não brasileiros é a gula.
Brasileiro come falando em comida, planejando a próxima refeição e trocando receitas. Somos gulosos por excelência e definição. Os viajantes já apontavam isso em seus escritos desde a aurora, ou, pelo menos, desde o século XVIII. Comida nos preocupa, nos toca, nos chama.
É, acredite, nossa principal herança portuguesa. Isso é tão forte que tomou de assalto nossos imigrantes, muitos deles, vindos a este país fugindo da fome em suas terras de origem. Podiam simplesmente ter chegado aqui e se saciado. Mas, não. Foram além. Aprenderam com os já aclimatados que mesas devem ter imensa fartura e mais, que comida é feita para sobrar.
Ah, vergonha das vergonhas quando fica só um tantinho no fundo da panela que mal serve uma pessoa. Ah, supremo fiasco se os convidados, filhos e netos não saírem da mesa estrebuchando, implorando por um chazinho digestivo ou um anti-acido. Não há festa se ninguém for da mesa para a farmácia, em busca de alívio para o excesso.
Aí está! Essa é nossa característica, se não fundamental, uma das mais importantes.
Nossas festas são para o excesso, para muita comida, para comer-se o dia inteiro. Gostamos de rodadas. Somos os maiores apreciadores de sequências. Morremos por um espeto corrido. Temos a felicidade suprema quando abre um novo rodízio da cidade. Se for de sushi, comida chinesa, mexicana, indicana, não importa. Podemos ser cosmopolitas. Só não nos peçam para ser comedidos, para ser nouvelle cuisine (a não ser que seja numa sequência longa, é claro).
Tenho aprendido essas coisas nas minhas aulas – sim, eu aprendo nas minhas aulas porque tenho muitos professores trabalhando comigo, mesmo quando os chamo de alunos.
Sobre comida, tenho aprendido demais. De hoje, posso dizer que muito pouca coisa é típica deste ou daquele grupo quando se trata das formas de comer.
Comemos como brasileiros: rápido durante a semana, muito nos finais de semana, festas, feriados e dias santos. A comida e a bebida pautam nossas festividades. Tudo acaba em pizza, em xis, em revirado, em sanduba, em pão de queijo com café, em chá com bolo.
Lorenzo um fofo de 6 meses filho de amigos
Além do arroz com feijão e da gula, acho que caminhamos atualmente (se já não chegamos lá) para um terceiro ponto de unidade, montando a base do tripé que sustenta o que somos. Claro, este último ainda é algo próprio do Brasil urbano, porém, vejo um crescimento cada vez maior de sua influência nos gostos nacionais. Revelarei o dito cujo numa história que me parece exemplar para o caso.
Durante o período de meu doutorado, fiz quatro meses de estudo na França (doutorado sanduíche, e lá vamos nós a outra referência culinária). Meu orientador de lá, um glutão por definição própria, costumava encerrar o semestre de suas aulas com uma festa em que pedia para cada aluno levar algum prato que lembrasse sua região.
Naquela época, ele tinha duas orientandas brasileiras, uma baiana e eu. Ele falou das dimensões continentais de nosso país e de como deveriam ser diferentes nossas cozinhas, o que ambas confirmamos.
No entanto, nos vimos, cada uma de seu lado, numa saia justa. Eu me viro bem na cozinha, mas a Casa do Brasil – local em que estava morando – não nos permite ter muitos utensílios e tampouco os fornece. Minha conterrânea, descobri mais tarde, tinha vários utensílios à sua disposição, mas mal sabia cozinhar.
Cada uma resolveu, então, sem comentar com a outra, levar o melhor que nossas limitações permitiam. Resultado: irrompemos à festa com grandes pratos de brigadeiros em nossos maiores esforços.
Ao longo da festa, rimos muito dessa nossa “unidade nacional”, e, quando a sobremesas foram liberadas, percebemos que o diálogo interno é mais fácil do que aquele travado com o externo.
Nossas petit truffes brésiliennes fora rechaçadas pelos franceses por serem trop sucré.
Como responder se não lembrando Gilberto Freyre: é o açúcar que, antes de tudo, faz de nós o que somos como civilização. E, acredito, em especial, o açúcar do brigadeiro, esse “negrinho” com gosto de Brasil.
Nikelen Witter : Escritora, historiadora e professora. O ativismo pela leitura é para não dizer que: não fiz nada de útil.
Postado no blog Sul 21 em 15/11/2012
Nota: A foto do fofinho Lorenzo foi acrescentada ao texto por mim.