'O Corvo Branco' é um filme biográfico que cobre alguns dos eventos mais importantes da vida de Rudolf Nureyev, bailarino excepcional, mas de personalidade polêmica e difícil. O filme narra intimamente como Nureyev tomou uma decisão que mudaria sua vida para sempre.
Ralph Fiennes já é um ator estabelecido com muitos títulos renomados carregando seu nome. Sua família é bastante conhecida no meio cinematográfico, uma vez que ele é irmão da diretora Martha Fiennes e do ator Joseph Fiennes. Em 2011, Ralph Fiennes decidiu dar o salto para a direção com Coriolano e, depois, nos surpreendeu com O Corvo Branco, filme britânico que estreou em 2019.
O filme conta a história do dançarino russo Rudolf Nureyev. De forma íntima, visa
reconstruir a figura de Nureyev a partir de suas memórias, desde a infância difícil até quando tomou a decisão que mudaria sua vida para sempre: pedir asilo político na França.
Fiennes garantiu que seu interesse pela figura de Nureyev surgiu como resultado da leitura do livro Rudolf Nureyev: The Life, de Julie Kavanagh. Na época, ele não pretendia fazer o filme biográfico, mas com o tempo a ideia se concretizou.
O trabalho de Kavanagh reflete muito bem as duas facetas do dançarino: de um lado, seu inegável talento para a dança; do outro, sua personalidade difícil.
Fiennes estudou profundamente o mundo do balé e escolheu um dançarino sem experiência em atuação para interpretar Nureyev: o bailarino ucraniano Oleg Ivenko. Sua intenção não era que um ator tivesse aulas de dança e, nas cenas mais complexas, tivesse um dublê, e sim captar a essência de Nureyev e que o intérprete pudesse simular seus movimentos.
Sem dúvida, essa decisão torna o filme um deleite estético pelo qual os os amantes da dança vão se apaixonar, mas que também cativa o público menos familiarizado com o balé. Apesar da conotação política inegável do filme, O Corvo Branco é, na verdade, uma história sobre arte e sobre a dança em si mesma, mas também sobre como nosso passado e nossas decisões moldam nosso caráter e nosso destino.
Um passado difícil
A estrutura do filme é não-linear, ou seja, vamos descobrindo alguns episódios do passado de Nureyev na forma de flashbacks. Sabemos que ele nasceu em um trem e cresceu em uma área rural perto de Ufa, na antiga União Soviética. Sua infância não foi fácil e ele foi marcado pela pobreza e pela miséria. Apesar de demonstrar grande aptidão para a dança, sua formação como bailarino demorou bastante devido às carências de sua infância. Em 1955, ele foi enviado a Leningrado, onde estudou em uma escola de balé. Lá, teve contato com Aleksandr Pushkin (interpretado por Fiennes), que se tornou seu professor.
O passado de Nureyev cobraria seu preço e, aos poucos, vamos descobrindo uma pessoa arrogante e egocêntrica que está em constante estado de alerta, como se acreditasse que o mundo inteiro estivesse conspirando às suas costas.
Fiennes explicou em várias entrevistas que sua intenção era mostrar ao espectador por que Nureyev tomava certas decisões e como seu passado ajudou a moldar uma pessoa que, em poucas palavras, era bastante desagradável. Sua dança era divina, mas sua personalidade era intratável. Isso foi o que Julie Kavanaugh captou em sua obra, e isso também é muito visível em O Corvo Branco.
Nascer no trem, viver na miséria absoluta e não ter tido acesso a uma boa educação foram alguns dos acontecimentos que mais marcaram a personalidade de Rudolf Nureyev. Sem dúvidas, ele era um personagem único: indisciplinado e irreverente, porém com um talento incomparável para a dança.
O título original do filme, O Corvo Branco, refere-se ao apelido pelo qual Nureyev era conhecido e que, na União Soviética, era usado para designar pessoas diferentes, que fugiam do convencional.
Fiennes não queria captar todos os acontecimentos da vida do bailarino, mas sim aproximar-se de uma história mais intimista, focada em um momento chave de sua vida: a viagem a Paris e suas memórias passadas. Desta forma, ele consegue conectar o espectador com o protagonista, ajudando-o a compreender as principais características da sua personalidade complexa. Vemos nele certos complexos: um desejo de liderança e uma vontade de aprender e progredir. Paris seria, portanto, uma revelação para Nureyev.
O Corvo Branco : uma visão intimista
O Corvo Branco é uma história de aprendizagem em todos os sentidos, do artístico ao pessoal. Nureyev tinha uma certa ambiguidade, uma estética andrógina e seus movimentos eram bastante femininos. Sua aparência física era atraente tanto para homens quanto para mulheres e, assim, descobrimos alguns dos relacionamentos românticos que o bailarino mantinha.
Numa época em que os bailarinos mal se destacavam em relação às mulheres, Nureyev conseguiu se sobressair e dar à sua dança uma certa feminilidade. As cenas de dança são realmente lindas, os corpos parecem falar e até nos ensaios o realismo toma conta da tela: a câmera segue as gotas de suor, a respiração, o som dos corpos ao dançar… E o resultado é incrível, nos faz participar de tudo que a própria dança implica.
Por que não podemos objetificar o eu? Porque o eu é algo que está constantemente sendo verificado e, por exemplo, quando dizemos “eu caminho”, estamos coletando um grande número de processos que estão acontecendo simultaneamente: calor, fadiga, etc. Quando dizemos “Eu caminho”, é como se parássemos o tempo, mas não poderíamos fazer uma imagem de tudo o que isso implica, porque é um processo íntimo.
Para este filósofo, a obra de arte tenta transmitir as coisas em andamento, ou seja, a arte tenta se aproximar dessa percepção íntima. Em O Corvo Branco, de alguma forma, essa premissa é cumprida: não apenas vemos mais um corpo dançando, mas o ouvimos respirar, o vemos suar, ouvimos seus movimentos e a câmera detalha meticulosamente cada ação. Também há uma cena absolutamente reveladora em que Nureyev visita o quadro A Jangada da Medusa, de
Théodore Géricault.
Nureyev ansiava por aprender, compreender a arte e traduzi-la em seus movimentos. Na infância, mal teve chance de estudar e interagir com a arte, por isso aproveitava todas as oportunidades para se aprofundar nela. E é exatamente isso que o espectador percebe ao observar Nureyev diante da Jangada da Medusa: a câmera aproxima a pintura, os menores detalhes, as pinceladas e, ao mesmo tempo, nos aproxima de Nureyev, de seu rosto contemplando a obra.
A câmera está tão próxima que podemos traçar cada poro de sua pele e, de alguma forma, sentir como o bailarino estava mergulhado em arte, conectando-se com a pintura. Assim, o filme acaba nos trazendo uma experiência intimista e emocionante. Não se limita a mostrar um homem olhando para uma pintura, mas constrói um retrato do que realmente significa enxergar uma pintura e aprender com ela.
Viagem a Paris
Não podemos deixar de lado o contexto político em que o filme se passa e como ele acaba influenciando de forma decisiva a vida do protagonista. Logo após sua mudança para Leningrado, Nureyev tem a oportunidade de deixar a União Soviética pela primeira vez e viaja para Viena com a companhia de dança. No entanto, por causa da sua conduta, ele é proibido de viajar novamente.
Sua sorte mudou em 1961, quando o dançarino principal do Kirov sofreu um acidente e Nureyev o substituiu. Esta substituição levou-o a Paris, onde a sua dança foi aplaudida e ele aproveitou para interagir com várias personalidades. Mas a União Soviética estava de olho nele e o bailarino percebeu que seria preso no aeroporto.
Com a ajuda de Santa Clara, mulher de origem chilena com quem fez amizade e que conhecia importantes figuras do poder, ele conseguiu pedir exílio. Nesse ponto, o filme dá uma guinada radical, a história se acelera e se afasta da intimidade inicial, aproximando-se de um thriller. O papel de Aleksandr Pushkin, por sua vez, será decisivo nestes últimos minutos do longa.
Assim, O Corvo Branco nos convida a reconstruir a história de Nureyev, contando com várias paletas de cores para delimitar os diferentes períodos da sua vida.
Finalmente, ele nos oferece alguma intriga na virada mais interessante do filme: já conhecemos o protagonista, odiando-o e amando-o em igual medida, compreendemos a sua personalidade complexa e, agora, ele está em apuros e queremos que o seu plano se concretize. Apesar do óbvio conteúdo político, O Corvo Branco é um interessante exercício artístico que nos faz participar de uma vida nada convencional.