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Anonymous e a guerra de informação digital
Um católico que, no dia 5 de novembro de 1605, quase conseguiu fazer voar pelos ares o Parlamento inglês com 30 quilos de pólvora, com o rei James I dentro, é o rosto oficial de uma nova revolta ocidental. Sem se encaixar em um rótulo tradicional, Anonymous realiza a sua maneira o desejo não confesso de muitos cidadãos do planeta: colocar uma pedra na engrenagem da perfeição ultraliberal, abrir a cortina de sociedades ultrapoliciais que só protegem os interesses do poder. O artigo é de Eduardo Febbro.
Eduardo Febbro - De Paris
Data: 21/02/2012
Paris - Guy Fawkes nunca pensou que sobreviveria a tantos séculos, e menos ainda que, mais de quatrocentos anos depois de suas andanças, a máscara que o representa se converteria em pleno século XXI no emblema daqueles que – desde os indignados até os guerreiros digitais do Anonymous, passando por toda a galáxia dos grupos antiglobalização – se opõem ferreamente à ordem de um mundo ultraliberal, depredador e indolente.
Este católico que, no dia 5 de novembro de 1605, quase conseguiu fazer voar pelos ares o Parlamento inglês com 30 quilos de pólvora, com o rei James I dentro, é o rosto oficial da revolta ocidental e, mais precisamente, o distintivo com o qual o grupo de hackers reunido sob a denominação de “Anonymous” se apresenta ao mundo. Suas ações já são parte da resistência permanente contra toda forma de violação de liberdade segundo os critérios com os quais Anonymous a entende.
Presente há vários anos na cena do hacking contestatório, Anonymous ganhou fama quando, em 2010, em plena ofensiva oficial contra o fundador do Wikileaks, Julian Assange, o grupo atacou as empresas multinacionais que tinham se somado ao boicote instrumentalizado pelo governo dos EUA contra todas as fontes de financiamento do Wikileaks: os portais de Amazon, PayPal, Visa, MasterCard e Postfinance, a filial dos serviços financeiros dos correios suíços, foram bloqueados pela operação Payback montada por Anonymous contra essas empresas que, sem ter nenhuma ordem judicial, trataram de impedir que o dinheiro chegasse a Wikileaks.
Era a primeira vez na história que se realizava uma ofensiva dessa magnitude não mais em nome do ciberanarquismo, mas sim em defesa de certa forma de liberdade.
Quem são e de onde vem esses valentes que ousaram penetrar as portas mais protegidas para ferir o coração do sistema? Frédéric Bardeau e Nicoals Danet, os autores de um destacado ensaio sobre Anonymous (“Anonymous: piratas informáticos ou altermundistas digitais?’), descrevem a influência desta galáxia sem hierarquia nem manual de instruções como “um movimento que modifica a relação de formas no interior da sociedade”.
De ação em ação, Anonymous instalou-se na paisagem política mundial e excedeu em muito a herança de seus pais culturais, a saber, toda a cultura contestatória norteamericana dos anos 70 perfeitamente representada por Stephen Wozniak, co-fundador da Apple, e Richard Stallman, o iniciador do projeto GNU.
Anonymous se plasmou em quatro operações muito ousadas. A primeira: os ataques contra a igreja da Cientologia, em 2008. A segunda: a ciberofensiva contra o escritório de advocacia Baylout, defensores dos direitos autorais da indústria do disco e do cinema nos Estados Unidos, e contra o portal da Motion Picture Association of America (MPAA), associação que o Anonymous persegue por suas “políticas excessivas” na proteção dos direitos autorais. Terceira: a intervenção a favor de Assange no que ficou conhecido como o primeiro episódio de uma autêntica guerra da rede. Coldblood, um dos porta-vozes do Anonymous, explicou então que a operação em defesa de Assange estava se convertendo em uma guerra, mas não uma guerra convencional. “É uma guerra de informação digital. Queremos que a internet siga sendo livre e aberta para todo mundo, como sempre foi”. O quarto episódio remonta ao dia 19 de janeiro, logo após o fechamento do site Megaupload e a prisão de seu criador, o multimilionário Kim Schmitz. Lançados dos quatro pontos cardeais do planeta, os ataques orquestrados por Anonymous bloquearam os portais do Ministério da Justiça dos EUA, da Casa Branca, da Warner, da Universal, do FBI, do organismo que supervisiona a internet na França, Hadopi, e a estrutura que administra os direitos de autor, a Sacem. Anonymous conseguiu inclusive penetrar no portal da presidência francesa e modificar as mensagens de boas vindas.
A quinta e última ação ocorreu há apenas alguns dias. Um grupo que se identificou como Anonymous divulgou a gravação de uma “reunião” telefônica entre o FBI e a polícia britânica, na qual se falava de ações contra os ciberativistas. Onde estão para conseguirem se meter nestas conversas tão íntimas? “Em todas as partes”, respondem Frédéric Bardeau e Nicolas Danet, os autores do ensaio sobre Anonymous. Estes dois especialistas observam que os Anonymous não são piratas propriamente, pois não roubam nada. Tampouco são “terroristas”, mas “um fenômeno muito mais vago cujo único fio condutor é a defesa da liberdade de expressão”. Bardeau e Nadet contam que, em certo momento, “a CIA tentou realizar um perfil dos simpatizantes de Anonymous: era tão indefinido que terminava apontando para a metade do planeta”.
Seu lema tornou-se realidade: “somos legião”. Neste sentido, Frédéric Bardeau destaca que os Anonymous não se enquadram em nenhum rótulo. “Não são nem anarquistas, nem sindicalistas revolucionários, nem marxistas. É um movimento pós-moderno, anônimo, planetário, descentralizado. Entre os Anonymous do Brasil, muito fortes e mobilizados contra a corrupção, e os da Áustria e Alemanha, todos antifascistas, não há unidade, mas sim denominadores comuns como a liberdade e a neutralidade da rede”. Diferentemente dos indignados ou de outros movimentos antiglobalização, Anonymous atua a partir do anonimato: não há partido político, nem fórum, nem cúpula, nem manifestação. Sua identidade física é a máscara de um militante católico britânico do século XVI e seus territórios são estes: irc.anonops.li, twitter@AnonOps, @AnonymousIRC, Facebook Anonymous, AnonOps.blogspot.com.
A origem do nome provém dos fóruns anárquicos 4chan (*). Neste portal norteamericano é fácil inscrever-se e cada participante recebe o pseudônimo de “Anonymous”. Estão em muitos lugares ao mesmo tempo, alguns são hackers aficionados, outros não, universitários, empregados, militantes de uma ou de muitas causas. Anonymous realiza a sua maneira o desejo não confesso de muitos cidadãos do planeta: colocar uma pedra na engrenagem da perfeição ultraliberal, abrir a cortina de sociedades ultrapoliciais que só protegem os interesses do poder. Nicolas Danet comenta que “Anonymous é um pouco como o voo dos pássaros migrantes. Formam uma massa que conhece o objetivo, mas um pássaro pode deixar o grupo a qualquer momento”. Os vídeos de Anonymous já são famosos, tanto pelo conteúdo como pela voz metálica que anuncia: “Somos legião. Não perdoaremos, não esqueceremos. Tenham medo de nós”.
(*) 4chan é um imageboard em inglês. Lançado em 1° de Outubro de 2003, seus sub-fóruns eram originalmente usados para postagem de imagens e discussão sobre mangás e animes. Os usuários geralmente postam anonimamente e o site já foi relacionado com subculturas da Internet e ativismo (Wikipédia)
Tradução: Katarina Peixoto
Postado no Blog Carta Maior em 23/02/2012
A polícia a serviço do copyright e a ciberguerra do Anonymous
Os EUA já haviam desencadeado ações contra o compartilhamento de arquivos antes, mas só a ofensiva contra Julian Assange e o Wikileaks se compara ao que foi feito ontem, tanto em dimensões materiais como simbólicas. Um indiciamento de 72 páginas, de um tribunal federal da Virgínia, levou o FBI a solicitar à polícia neo-zelandesa a prisão de sete pessoas ligadas ao site de compartilhamento de arquivos MegaUpload. Quatro dessas sete pessoas, incluídos os fundadores do site (Kim Dotcom and Mathias Ortman), já estão presas. Entre os indiciados, há não só neo-zelandeses mas alemães, um estoniano, um eslovaco e um holandês.
O caso é singular porque ele não envolve absolutamente nenhum cidadão dos EUA ou hospedagem de site nos EUA. Mesmo assim, o FBI foi capaz de realizar as prisões em território estrangeiro e impor o fechamento. O indiciamento afirma que o “dano” causado pelo MegaUpload é de mais de US$ 500 milhões, segundo a estranha lógica usada pelo lobby do copyright para fazer esses cálculos, ou seja, a de que todos os usuários que baixaram filmes, canções, livros e outros produtos culturais nos sites de compartilhamento pagariam por eles os preços fixados pela indústria, caso esses sites não existissem. O indiciamento é ainda mais surpreendente porque o MegaUpload tinha uma política de retirar imediatamente o conteúdo sempre que notificado pelos detentores do copyright. O site já havia, inclusive, registrado um agente DMCA (Digital Millenium Copyright Act) junto ao governo dos EUA. Como bem colocou Walter Hupsel, mandaram prender o carteiro e, como apontou o advogado espanhol Carlos Sánchez Almeida, são mais de 150 milhões de usuários cuja privacidade na comunicação online poderá ser violada pela polícia federal dos EUA.
Entre ativistas online, foi intensa a especulação de que a ofensiva do FBI contra o MegaUpload seria uma possível compensação do governo Obama ao lobby do copyright depois da declaração do presidente contra o SOPA (Stop Online Piracy Act). O SOPA, um draconiano projeto de criminalização do compartilhamento de arquivos que inclui até mesmo a possibilidade de que se impeçam os motores de busca de apontar para sites acusados de violar o copyright, foi objeto de um mega-protesto na internet anteontem. Esses protestos mudaram significativamente o balanço de forças no Congresso, mas o projeto conta com o apoio de Hollywood, tradicional aliado dos Democratas nas eleições presidenciais americanas. Logo depois da declaração de Obama, o Senador democrata e lobista de Hollywood Christopher Dodd ameaçou Obama com o fim das generosas doações hollywoodianas à sua campanha.
No começo da noite, veio a reação. Articuladas pelo coletivo Anonymous, pelo menos 5.635 pessoas usaram LOIC (Low Orbit Ion Cannon) para realizar ataques de negação de serviços a vários sites do governo dos EUA e da indústria do entretenimento. Num intervalo de poucas horas caíram (e, no momento de produção desta matéria, continuavam derrubados), os sites de FBI, Copyright Office, Department of Justice, Warner Music, Universal Music e Recording Industry Association of America. Na Espanha, caía também o site da Sociedad General de Autores y Editores, um dos grandes defensores do lobby do copyright no país ibérico. É uma ação de impacto imediato considerável, que provoca euforia na rede e é bem desmoralizante para as empresas e autoridades visadas. Mas há que se perguntar qual o seu alcance para a continuação da luta.
Acostumados, que talvez já estejamos, à escalada do horror do poder policial dos estados, vale lembrar o ineditismo da ação do FBI ontem. Como afirmou Diego Souto Calazans no Twitter: “Imagine uma imensa biblioteca onde você pode ter acesso não apenas a todos os livros já escritos, mas também às músicas, filmes, ideias … Essa biblioteca total, esse museu vivo da cultura universal, é a Internet. É o que querem incendiar”. Uma declaração da Eletronic Frontier Foundation coloca os pingos nos is: “Este tipo de aplicação de procedimentos criminais internacionais à política para a Internet estabelece um precedente terrorífico. Se os EUA podem capturar um cidadão holandês na Nova Zelândia por causa de um reclamo de copyright, o que falta mesmo? O que vem por aí?”
Postado por Idelber Avelar no Blog Revista Fórum em 19/01/2012
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