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O que há de política e ecologia nesse terninho de Janja é um magnífico escândalo



Geraldo Varjabedian

Mil anos-luz longe do mercado. Quando quebrei, lá por 2006, a indústria de seda, no Brasil, passava maus bocados.

Trabalhei um bom tempo com reciclagem e reaproveitamento de sedas, numa época em que tecidos planos de fios orgânicos como linho, algodões não comerciais e sedas agonizavam, caiam de uso, dando lugar às microfibras e tecidos tecnológicos – todos fósseis – que engoliram o mercado vorazmente.

Quem estuda, tenta alertar e educar sobre modos de produção, sabe quanto vale este trabalho estupendo de tingimento da seda com caju e ruibarbo, a arte dos bordados em palha das bordadeiras de Timbaúba. Que terninho estudado e conceitualmente precioso!

Seda mancha, sofre com a ação do tempo e, não raro, mal acondicionada, pode apresentar pontos de bolor, ficar puída, com pequenos furos por traças e outros danos. Dá um trampo, mas dá pra ressuscitar, tingir, estampar. 

Pelo que a seda custava, e ainda deve custar, pelo impacto ambiental da produção, pelo manuseio trabalhoso, pelo tempo que toma; recuperar valor reaproveitando e reciclando era uma opção para estilistas, ateliês e confeções daqueles anos. Até onde sei, poucas oficinas brasileiras de estamparia e tinturaria artesanais em seda sobreviveram. E não voltei a frequentar esse mundinho pra saber, inclusive, porque os tempos a seguir foram de inúmeros mortais carpados em sequência até aqui e uma mudança irreversível de rumos.

Por conhecer um pouquinho do assunto, até pelo gosto que tomei pelo trabalho, tomei um tranco com o traje da Janja na posse. Nem tanto pelo traço, porque moda não é minha área, mas pela seda.

Claro que fui pesquisar. E entendi a construção feita pela estilista Helô Rocha e a importância do trampo. Muita ecologia e política envolvidas no processo.

Inevitavelmente, caí no mesmo mal-estar que sempre tive na relação com o universo da moda e da apropriação mal-compreendida que muitos fazem, focados no modelo, na técnica de costura, na crítica, na mídia e na pirotecnia consumista que envolve o setor.

Não, Janja não estava apenas podre de chique. Estava vestida politicamente, intencionalmente, desafiadoramente, no que sintonizou perfeitamente com a subida da rampa e o compartilhamento popular da faixa presidencial.

Quem questiona, rastreia, estuda, tenta alertar e educar sobre modos de produção, sabe quanto valem propostas como este trabalho estupendo de tingimento da seda com caju e ruibarbo, a arte dos bordados em palha das bordadeiras de Timbaúba. Que cuidado! Que terninho estudado e conceitualmente precioso! Trabalho especializadíssimo, que escancara um Brasil que negligenciou seus próprios modos de produção, conhecimentos, soberania, para dar espaço às psicopatias industriais. Que homenagem ao Brasil!

Nosso povo já dominou tanto conhecimento, desenvolveu materiais, acabamentos, processos de fiação e tecelagem, técnicas de tingimento a partir de pigmentos vegetais e muitas outras artes e ofícios artesanais que vale pesquisar. É um universo desconhecido do próprio país. E você pode abstrair a mesma "lógica" para outros processos produtivos deste país de saberes e soberania sabotados.

Croquis do terninho de Janja por Helô Rocha


O que há de ecologia nesse terninho da Janja é um magnífico escândalo. Ainda mais, no momento delicado que vivemos no planeta, que busca desesperadamente outros modos de vida, outras referências de produção, consumo e descarte, outro padrão de bem-estar. E isso só é possível por modos de produção mais ecológicos, relações de trabalho mais valorizadas, inclusivas; preocupação concreta com os ciclos de vida do que é produzido e consumido; resgate de saberes populares e olhos abertos para um infinito campo de trabalho que nossa biodiversidade pode inaugurar - se deixarmos de ser vira latas, tapados, babões colonizados e entendermos que o mundo dos direitos e do trabalho têm que participar da escolha soberana dos modos de produção. Isto é anticapEtalismo! Esta provocação aos modos de produção está todinha posta no figurino da Janja!

Estou entalado com o desfile de posse naquela carruagem fóssil, presenteada ao Getúlio Vargas que, não por acaso, foi figura fundamental no estabelecimento do modelo de desenvolvimento que hoje precisamos superar. Fóssil, insustentável, machista, autoritário, protocolar, decadente, populista... Paro por aqui, porque Getúlio, século 20, importa menos que Janja, século 21. Mas a rendição ao calhambeque emissor de gases, ao alheamento diante do óbvio de que toda a luta climática pode ser condensada num símbolo –o automóvel–, precisa ser grifada em vermelho!

Já que há tanta simbologia, e nossa esquerda é toda mandrake em simbologias, deve saber muito bem das origens, da história e do significado da marca Rolls Royce e do tamanho equívoco no uso protocolar daquela chaleira a explosão que, em minha opinião, já deveria estar num museu, sobre cavaletes e com uma plaquinha explicando seu lugar no passado do país.

O terninho de Janja, mais a subida da rampa e o compartilhamento da faixa entre brasileiros de carne e osso mostraram muito, conceitual e simbolicamente, sobre um, talvez, novo paradigma, focado no enfrentamento às mudanças climáticas, na preservação da biodiversidade, no acolhimento dos saberes populares brasileiros, no desenvolvimento de outra economia, no entendimento do que podemos aprender com o bem-viver indígena, com os modos de produção populares, com os saberes dos povos originários, com os conhecimentos ancestrais do país, apontando um caminho soberano para formas de trabalho que não promovam a degradação planetária!

Ainda estou azedo com o desconforto de certos militantes diante de meu questionamento ao uso da carruagem fóssil. Não sei como, ainda fico impressionado com os chiliques desenvolvimentistas, com o antiambientalismo caduco, com os deslumbramentos consumistas, ainda tão enraizados em nossa esquerda. Não sei como daremos conta de boa parte de nossos quadros, que não conseguiu entender o recado do conjunto de seda da Janja e se importou tanto com a crítica ao uso daquele automóvel.

Não, Janja não estava apenas podre de chique. Estava vestida politicamente, intencionalmente, desafiadoramente, no que sintonizou perfeitamente com a subida da rampa e o compartilhamento popular da faixa presidencial.

Janja deu aula de ativismo. De ecologia. De bioeconomia. De século 21. Fez valer todo nosso empenho para enxotar a caretice do poder.

Vale lembrar que os homens que habitam os poderes todos de nosso país não são muito diferentes do governo recém-deposto. A imensa maioria dos homens brasileiros ainda está cimentada aos valores do século 20, aos modos de pensar, ser e fazer dos que cultuam o tal automóvel inglês como desígnio de importância –em plena era da emergência climática!

Este é um mundo em que gente muito poderosa e sábia está dando adeus ao automóvel, questionando o transporte individual motorizado, ponderando investimentos, a partir do amplo repertório da ciência do clima e exercitando símbolos e ativismos pela tão implorada mudança nos modos de vida.

Se a ideia é trabalharmos com símbolos, vale a ponderação de que, em 2050, quando cair a ficha de que não conseguiremos segurar o aquecimento global dentro do aceitável, aquela lata velha conservadora será centenária, mas fará parte do museu dos símbolo de decadência!

Tem que ser dito!

A luta que o Brasil assumiu mundialmente ao eleger Lula é para virar a página do país. Deixar para trás o século 20 e os anteriores ou, pelo menos, deixar clara a intenção de enfrentar os conservadores, os tiranos, os produtores de miséria, a decadência patriarcal, os coronés, a engenharia antinatureza, os capitães de indústria, os fazendeiros tapados, os entusiastas do consumismo, da exclusão, enfim, enfrentar o insustentável com o qual lucram as mentes fósseis que ainda intoxicam este país.

Encantado com o papel da Janja em toda essa luta!


*Este texto foi originalmente publicado no facebook de Geraldo Varjabedian




Roupa de Janja na posse de Lula tinha detalhes de capim dourado confeccionados por artesãos do Tocantins