BRASÍLIA (Reuters) - Atingido por duas inundações catastróficas no intervalo de apenas seis meses, depois de ter enfrentado quase três anos de seca inclemente, o Rio Grande do Sul virou o exemplo do que as mudanças climáticas podem fazer com eventos já considerados extremos, mas que vêm atingindo proporções cada vez piores em um mundo que não consegue conter o avanço da temperatura global, avaliam especialistas.
Nos últimos dias, o Estado foi palco de uma confluência infeliz, explicam cientistas ouvidos pela Reuters. De um lado, um El Niño extremamente forte, com todos os oceanos mais quentes, não apenas o Pacífico, como é comum no fenômeno, e uma onda de calor no Sudeste e no Centro-Oeste, que aumentou a umidade no ar e favoreceu a chegada de um ar quente e úmido ao Sul do Brasil.
Do outro lado, vinda da Antártida, uma frente fria com chuva e vendaval, mas sem força para empurrar o ar quente. Junto a isso, com o El Niño, as frentes andam de leste para oeste, em vez de sul para norte, o que faz com que chova mais tempo em um só lugar, explica o pesquisador Marcelo Schneider, do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).
A combinação de fatores, no entanto, não é totalmente fora do comum, mas sim sua intensidade. Cientistas ouvidos pela Reuters explicam que o Rio Grande do Sul sempre foi o ponto de encontro de sistemas tropicais e sistemas polares, o que criava um padrão que inclui períodos de chuvas intensas e outros de seca. A exacerbação dos fenômenos causados pelas mudanças climáticas, no entanto, aumenta o choque desses sistemas, piora fenômenos com El Niño e La Niña, e deixa o clima imprevisível.
"A mudança climática tem mais impacto do que o El Niño sozinho. Essas características típicas do RS estão se acentuando com a mudança do clima. A rivalidade entre o trópico aquecido e úmido e a Região Sul em direção à Antártida tem favorecido as tempestades severas, as frente frias intensas, os ciclones explosivos, as ressacas mais extensas", explica o pesquisador Francisco Aquino, chefe do centro polar e climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O El Niño corresponde ao aumento da temperatura das águas do oceano Pacífico na sua porção equatorial, enquanto a La Niña corresponde à diminuição da temperatura dessas águas. No Brasil, o El Niño provoca maiores volumes de chuvas no Sul, enquanto a La Niña diminui os volumes pluviométricos na região.
Até a metade de 2023, o Estado enfrentava uma estiagem histórica, fruto de um período longo de La Niña, que durou por mais de dois anos, com pouquíssimos períodos de chuva. O governo federal chegou a estudar a implantação de um sistema de cisternas em algumas regiões, da mesma forma que fez no Nordeste.
Foram três anos seguidos de quebras de safra agrícola no Estado pela seca, com impacto direto no Produto Interno Bruto (PIB). De uma participação de 6,53% no PIB do país em 2019, para 5,90% em 2023, de acordo com dados do Departamento de Economia e Estatística do governo gaúcho.
Em setembro do ano passado, já sob efeito do El Niño, o Estado ficou debaixo d'água devido à passagem de um ciclone extratropical, em uma inundação que já era considerada histórica, com mais de 50 mortes registradas.
Agora, apenas seis meses depois, novas enchentes quebraram novamente os recordes. Nesse momento, quase metade dos municípios gaúchos foram atingidos pela chuva, em diversas regiões do Estado, com ao menos 31 pessoas mortas e mais de 70 desaparecidas, segundo dados da Defesa Civil estadual.
"Nem todos anos de El Niño temos desastres dessa magnitude. É notável que temos cada vez mas desastres e cada vez piores. O aquecimento global muda padrões do clima e eventos extremos se tornam cada vez mais frequentes. Uma atmosfera mais quente retém mais umidade, assim como um oceano mais quente gera mais energia, mais combustível para tempestades severas. Então fica tudo mais potencializado", resume a pesquisadora Karina Lima, doutoranda em Climatologia pela UFRGS.
Lima explica que não foram feitos ainda os chamados estudos de atribuição, que verificam se um evento extremo foi tornado mais provável e/ou mais intenso devido às mudanças climáticas. "Mas é muito difícil que um evento dessa magnitude não tenha tido influência", afirma.
A secretária de Mudanças Climáticas do MMA, Ana de Toni, ressalta que não há dúvidas que o país já está vivendo uma emergência climática e que casos como do Rio Grande do Sul e a seca extrema na Amazônia, efeitos do El Niño, foram exacerbados pelas mudanças no clima.
"Temos que fazer a adaptação. Claro que não significa que vamos deixar de lado a mitigação, mas ao mesmo tempo tem que fazer a adaptação a um mundo que vai viver com uma temperatura mais elevada", disse.
Toni explica que o Brasil é muito vulnerável às mudanças climáticas, com uma economia agrícola muito forte que depende de padrões climáticos, energia baseada em hidrelétricas e uma grande população que vive em situações vulneráveis.
"A adaptação é muito, muito urgente. O custo da inação é muito maior", diz.
O governo trabalha com planos de adaptação em 15 áreas, que passam por agricultura, infraestrutura, cidades, entre outras. Algumas das medidas, por exemplo, são planos de retirada de moradores de encostas, sempre vulneráveis à chuva; o desenvolvimento de sementes mais resistentes; estudos de infraestrutura para construção de estradas, pontes, etc, que sejam mais resistentes.
"Estamos vivendo essas mudanças climáticas, que estão chegando muito mais rápido e muito mais forte. Precisamos adaptar e mitigar ao mesmo tempo", defendeu.
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