Lula e Benjamin Netanyahu (Foto: Ricardo Stuckert
Lula acerta ao dizer que não há na História nada semelhante ao que está acontecendo na Faixa de Gaza, a não ser “quando Hitler resolveu matar judeus”
Aline Alves
A declaração do presidente Lula sobre a investida de Israel sobre o povo palestino, realizada ontem na Etiópia, não deveria ser convertida em polêmica tantas décadas depois dos horrores da Segunda Guerra Mundial, se houvesse alguma honestidade intelectual por parte dos críticos. Hollywood explorou à exaustão o tema do nazismo, e isso poderia ter servido à conscientização geral sobre o assunto, mas o resultado foi a mercantilização da barbárie, a banalização da violência, e um desconhecimento sobre o nazismo e o Terceiro Heich, que foram reduzidos a inimigos derrotados da América.
Não pretendo aqui dar conta de descrever o que foi o nazismo, em razão da sua densa complexidade, apenas lembrar de elementos científicos – para que não restem dúvidas, ainda mais em um tempo em que é preciso resgatar a ciência para que ela volte a ter significado para o desenvolvimento humano – que demonstram que Lula acerta em sua declaração sobre a situação da Palestina, ao dizer que não há na História nada semelhante ao que está acontecendo na Faixa de Gaza, a não ser “quando Hitler resolveu matar judeus”. A mídia hegemônica, assim como Hollywood, em seu empenho em deseducar mais do que promover um real debate, prontamente rejeitou a comparação entre Israel e a Alemanha nazista, no entanto a História mostra que não há aqui nenhum equívoco. Em Reactionary modernism: technology, culture and politics in Weimer and the Third Reich, o historiador Jeffrey Herf apresenta sua análise sobre o nazismo e observa que ele é construído sobre dois pilares, grosso modo: a regressão e a modernidade, posta à disposição da primeira. A Alemanha nazista contava com alta tecnologia para desenvolver o que precisava para realizar o projeto do Terceiro Reich: resgatar os tempos do império alemão e cumprir sua utopia racial. Leitor de Adorno e Hoeckheimer, Jeffrey Herf identifica no nazismo a “dialética da modernidade” quando aponta que o avanço da ciência, em vez de promover o desenvolvimento humano, muitas vezes promoveu regressão. Isso está nítido nas malhas ferroviárias alemãs sendo usadas para transportar judeus, ciganos, gays, comunistas, deficientes físicos para os campos de extermínio, na tecnologia aplicada ao cinema em serviço da propaganda nazista e no potencial bélico utilizado para atacar os inimigos do Reich.
Dos mesmos recursos dispõe o Estado de Israel, e da mesma forma os utiliza: tecnologia altamente avançada (tivemos, inclusive, uma ideia desse avanço quando a ABIN paralela usou aparelhos de espionagem israelense) utilizada para a eugenia, que parece dar o tom do que seria a pátria ideal para judeus, concepção essa adotada por parte desse Estado de Israel e de setores do sionismo radical (importantíssimo lembrar aqui que essa não é a concepção geral da comunidade judaica, que tem em grande parte se manifestado criticamente em relação aos ataques de Israel contra os palestinos, sofrendo, inclusive, severas retaliações pelo mundo, como é o exemplo do jornalista Breno Altman). É com essa tecnologia que, aos olhos de todo o mundo, mais de 30 mil palestinos foram assassinados por Israel desde outubro passado, sendo 40% das vítimas crianças. Esse número é importante para compreendermos que não há espaço aqui para tergiversar; a mídia hegemônica tem dito que não cabe a comparação entre a Alemanha nazista e o atual Estado de Israel, uma vez que ele não tem um projeto eugênico. Fica o questionamento: quem consegue matar 30 mil pessoas em 4 meses apenas para se defender? Quem, em legítima defesa, mata algumas dezenas de opositores (no caso, integrantes do Hamas) e cerca de 12 mil crianças? Como um Estado com técnicas tão avançadas erra o alvo 30 mil vezes, isso sem contar com os feridos? Como um Estado que se defende mantém suas cidades de pé, enquanto o território do adversário tem 95% da população desabrigada?
O que estamos testemunhando é a exata utilização de técnica avançada para a realização de limpeza étnica, com o propósito de se construir uma utopia racial que, desta vez, só é possível se o povo palestino não existir mais. É o resgate de um passado mítico que confere a um povo uma suposta superioridade, se coloca como a única forma possível de vida na terra, e que exige o extermínio de tudo e todos que não se incluam nessa raça e seu passado. Como esse tipo de racismo se estabeleceu como princípio do sionismo mais radical é uma questão que pode e deve ser analisada com mais profundidade, até para que sejamos capazes de evitar uma nova onda de ódio aos judeus, e também para que não nos percamos do debate científico e honesto. Mas o ponto a que quero chegar aqui é que Lula acertou ao criticar o ataque do Hamas aos kibutz israelenses, e acerta novamente em condenar o genocídio promovido por Israel contra os palestinos; acerta também ao compará-lo a outro momento histórico, o do nazismo, com o qual compartilha métodos e objetivos. E acerta sobretudo ao fazê-lo diante de todo o mundo, como o líder cujo vulto alcança todos os cantos do planeta. Acredito que poderíamos fazer apenas uma observação sobre um ponto da fala de Lula, se o que está acontecendo no presente já se repetiu em outro momento histórico além do nazismo, e lembraríamos, por exemplo, da devastação colonial pela qual passaram a América Latina, África e Oriente Médio; podemos ir mais atrás e lembrar da Inquisição Católica, das Cruzadas, do Império Romano. Mas sem esquecer que nenhum desses episódios contou com tanta sofisticação técnico-científica quanto a que estamos testemunhando neste exato momento.
Coletivo de judeus publica nota em apoio às falas de Lula sobre massacre em Gaza
O coletivo Vozes Judaicas por Libertação publicou uma carta em apoio ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que virou alvo de críticas por suas falas sobre o ataque de Israel contra os palestinos na Faixa de Gaza.
No último domingo (18), em entrevista coletiva antes de deixar a Etiópia rumo ao Brasil, Lula comparou o massacre promovido pelas forças militares de Israel contra a Faixa de Gaza ao Holocausto promovido pela Alemanha nazista contra os judeus na Segunda Guerra Mundial. "O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus", afirmou o presidente.
Após a fala, o ministro das Relações Exteriores de Israel, Israel Katz, anunciou, nesta segunda-feira (19), que Lula seria considerado "persona non grata" no país. O termo é um instrumento jurídico utilizado nas relações internacionais para indicar que um representante oficial estrangeiro não é bem-vindo.
Para o coletivo Vozes Judaicas por Libertação, é impossível comparar e hierarquizar genocídios, dado que a “a experiência vivenciada por cada povo afetado é inigualável”. Ao mesmo tempo, no entanto, "a contradição de o povo judaico ser ora vítima e agora algoz é palpável, tenebrosa e desalentadora. Lula externou o que está no imaginário de muitos de nós".
O grupo ainda afirma que “enquanto coletivo de judias e judeus, temos antepassados que foram vítimas do Holocausto nazista, e entendemos que nosso imperativo ético é nos posicionarmos contra o genocídio do povo palestino e contra a utilização da nossa defesa como justificativa”.
Confira a carta na íntegra:
Dando um passo além nas contínuas denúncias dos crimes cometidos por Israel contra os palestinos, o presidente Lula causou furor ao fazer uma comparação entre o que ocorre hoje em Gaza e o que Hitler fez com os judeus durante o nazismo.A comparação entre genocídios é sempre delicada pois a experiência vivenciada por cada povo afetado é inigualável. Cada um representa uma narrativa singular e dolorosa na história das comunidades vitimadas. Logo, não há como estabelecer qualquer hierarquia entre genocídios. É impossível estabelecer uma métrica objetiva para determinar o 'pior' genocídio da história. Categorizar historicamente vítimas maiores ou menores é uma perigosa armadilha de reprodução de racismo.A contradição de o povo judaico ser ora vítima e agora algoz é palpável, tenebrosa e desalentadora. Lula externou o que está no imaginário de muitos de nós. Uma comparação que causa muita dor a judias e judeus de todo mundo, que tiveram as suas vidas cindidas pelo genocídio dos judeus na Europa, e agora veem um crime similar sendo cometido, supostamente em seu nome. Enquanto coletivo de judias e judeus, temos antepassados que foram vítimas do Holocausto nazista, e entendemos que nosso imperativo ético é nos posicionarmos contra o genocídio do povo palestino e contra a utilização da nossa defesa como justificativa.Se a criação e fundação de um Estado judaico foi uma medida de sobrevivência num mundo sitiado, ela logo se tornou um pesadelo. O Estado de Israel não trouxe emancipação verdadeira aos judeus pois a sua existência é mantida às custas da negação da autodeterminação dos palestinos. As lideranças israelenses seguem promovendo um massacre contra palestinos e ainda ameaçam a vida de judeus e judias em todo o mundo. Israel representa hoje a maior fonte de insegurança para todos os judeus do planeta ao usar nossa identidade como fachada e justificativa para sua campanha de terror.Por isso, defendemos e acreditamos que as palavras de Lula são de grande importância pois levantam questões relacionadas à urgência da ação, como um chamado definitivo dirigido a todos para agir diante do que ocorre em Gaza neste momento. Frente à incapacidade da ONU e de várias organizações internacionais em conter a violência perpetrada por Israel em Gaza, destaca-se a importância vital da postura demonstrada por líderes internacionais como Lula, que levantam suas vozes contra o que é já considerado por incontáveis especialistas como um genocídio contra o povo palestino.As palavras têm poder. Se a forma como Lula se expressou na ocasião foi pouco cuidadosa – tropeçando justamente neste ninho de comparações forçadas – sua fala tem o objetivo de atingir a imaginação e provocar uma crise moral sobre Israel. O pedido de impeachment protocolado pelos deputados bolsonaristas é uma medida descabida, assim como as acusações de antissemitismo – cujo real objetivo é deslegitimar o governo e a diplomacia brasileira. Não acreditamos que judeus brasileiros estão em risco por causa de sua declaração.Apoiamos as colocações do presidente Lula e cobramos que a radicalidade de suas palavras seja colocada em prática. Seria um gesto diplomático de relevância gigantesca romper todas as relações entre o estado brasileiro e Israel, em especial as relações militares que também fortalecem a barbárie em terras brasileiras, com a compra de armas e tecnologias de controle social que são usadas para atingir a vida do povo negro nas favelas. Convocar o embaixador brasileiro em Tel Aviv foi um passo ainda insuficiente nessa direção.Por fim, convidamos a todas e todos, mas principalmente ao governo brasileiro a atender as demandas do movimento internacional de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), liderado pelas bases da sociedade civil palestina. O povo palestino tem pressa e nossas ações têm poder."Edição: Lucas Estanislau
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