Carta à juíza Carolina Lebbos
por Stella Senra*
Senhora juíza,
Nos últimos tempos temos visto um grande número de juízas, mulheres que, como a senhora, se tornaram conhecidas pelo rigor — ou melhor, pela dureza — de suas sentenças.
Se tomo a decisão de lhe escrever, é também nessa mesma condição: de mulher para mulher.
Essa curta afirmação — de mulher para mulher — parece óbvia, mas não é.
Colocando-me me aquém dos muitos estereótipos que tem definido o termo “mulher”, refiro-me ao sentido animal, o mais cru do termo: à carne, ao sangue, às entranhas que dão origem à vida.
Refiro-me, portanto, a seres capazes de um amor irrestrito.
Também esta expressão “amor irrestrito” exige maior precisão.
Se quiser saber o que pretendo dizer, deixe sua sala de juiza federal (responsável pela custódia do Presidente Lula), dê um pulo ao presídio e vá até a fila da visita aos prisioneiros.
Lá verá quase unicamente mulheres, em filas que dobram esquinas; dentre elas mães, uma maioria de mães, mas também esposas, namoradas, filhas…
Qualquer que seja o crime, lá estarão elas: para além do mal, cuidando; para além do mal, amando.
É nesse plano das entranhas que estou me colocando para me dirigir à senhora.
E o que me motivou foi a pungente fotografia de Ricardo Stuckert que circulou na internet, da família Lula da Silva no velório do menino Arthur, neto do presidente Lula.
Habituados a vermos a representação fotográfica do presidente sufocado pelos abraços de seus admiradores não nos espanta, à primeira vista, esse amontoado de braços e cabeças, num enlace tão estreito que mal conseguimos distinguir, ao centro, a cabeça de Lula.
Mas logo percebemos, recuada ao fundo do quadro, uma pequena figura solitária que chora; e de imediato ficamos sabendo que o motivo de tal enlace não é a alegria do encontro.
É uma grande dor, a mais profunda, a dor da perda, aquela que faz de todos os corpos um só corpo, um sólido bloco de dor.
Esta foto me fez pensar na senhora, que concedeu 1:30 hs ao presidente para estar com sua família na despedida do netinho.
E como tal medida temporal não foi extraída da letra da lei, posso me perguntar que aritmética lhe teria servido para chegar a esse número.
Que contabilidade lhe teria inspirado?
Seria a senhora conhecedora de alguma “medida” para o sofrimento humano?
De um número capaz de definir o rugir da dor de uma família?
A dor é selvagem. Não escolhe, não poupa. É devastadora.
Pode acontecer a todos e a qualquer um de nós. Por ela sofremos. Mas sofremos também quando ela atinge o outro.
Seja ao nosso lado, seja distante de nós — mas próximo pela mesma condição de seres humanos.
O sentido de humanidade infelizmente não é distribuído de forma equitativa pra todos; mas não é tampouco passível de ser medido, não é objeto de nenhuma matemática, de nenhuma contabilidade.
Por isto não pode ter sido ele que lhe ajudou a estabelecer tão precisamente a “cota” do presidente Lula.
Aqui se trata de amor irrestrito, (que, portanto, também não pode ser medido), de carne, de sangue, de entranhas — coisas concretas e também incomensuráveis que se objetivam, no entanto, de modo palpável no mundo das mulheres.
Mesmo dentre os animais, as fêmeas que dão a vida cuidam e defendem seus filhotes até a conquista de sua autonomia.
É o que me deixa perplexa, com uma pergunta que não sei responder: de que matéria serão feitas suas entranhas, juíza Lebbos?
Stella Senra
*Foi professora da PUC-SP. Mantém o site stellasenra.com.br.
Postado em Viomundo em 08/03/2019
Minha homenagem às mulheres como Stella Senra, Marisa Letícia, Marielle Franco, Malala Yousafzai, Gleisi Hoffmann, às vitimas de feminicídio, à minha mãe e minha irmã, às primas, às amigas maravilhosas e às leitoras deste blog, enfim a todas que unem sabedoria com coração e ternura em suas batalhas diárias.
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