João Filho
Muito se falou nessa semana sobre a eleição da “pós-verdade” como a palavra do ano pelo dicionário Oxford. O verbete é assim definido: “circunstâncias em que os fatos objetivos têm menos influência sobre a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”
Impossível discordar da eleição. 2016 está sendo o ano em que a verdade dos fatos não está importando para a opinião pública, e despontando como o mais representativo dessa nova era.
Basta fazermos uma retrospectiva para atestar que a pós-verdade é mesmo a palavra definidora do nosso zeitgeist. O Brasil derrubou uma presidenta com deputados admitindo que votaram por motivos diferentes do único que poderia legalmente promover o impeachment.
Mesmo diante de tantas confissões, a grande imprensa brasileira ignorou o fato e continuou rechaçando a narrativa de que havia um golpe parlamentar em curso.
Mesmo diante de tantas confissões, a grande imprensa brasileira ignorou o fato e continuou rechaçando a narrativa de que havia um golpe parlamentar em curso.
Michel Temer confessou indiretamente o golpe ao admitir que o impeachment aconteceu porque Dilma não aceitou seguir seu plano de governo. A imprensa novamente cumpriu seu papel e fingiu que a declaração nunca existiu.
Nos EUA, a nação mais rica e poderosa do mundo, elegeu-se um palhaço mentiroso apoiado pela Ku Klux Klan. Mesmo com um repertório de mentiras assustadoras, milhões de pessoas decidiram votar em Trump. Não importa se os fatos comprovaram sua compulsividade em mentir. O que vale é a emoção – a mesma que levou a população a apoiar uma guerra para impedir que o inimigo usasse armas de destruição em massa que nunca existiram.
A última semana brasileira foi toda trabalhada na pós-verdade e é dela que vamos falar.
Começamos bem na segunda-feira, com uma TV estatal paulista convidando apenas jornalistas de veículos apoiadores do impeachment para entrevistar um dos grandes beneficiários do processo: Michel Temer.
Tirando uma ou outra pergunta espinhosa para dar aquele verniz jornalístico, o que se viu foi um grande bate-papo informal entre amigos, em que perguntas de cunho pessoal claramente buscavam humanizar a figura de Temer.
O presidente não-eleito ficou bastante à vontade para enrolar nas respostas, sem nenhum tipo de contestação por parte dos entrevistadores.
Ao final da entrevista, Eliane Cantanhêde – que já veio a público pedir uma trégua para Temer – apareceu em vídeo gravado nos bastidores bastante animada, dizendo: “Cá entre nós, bem baixinho para que ninguém nos ouça: de romance o presidente entende, hein!”.
Na era da pós-verdade, em que os fatos objetivos são pouco ou nada relevantes, não há o mínimo pudor em enfatizar o lado romântico do presidente justamente no período em que o país vive a maior crise política da sua história.
— Carlos G F P Wolff (@c_wolff) 17 de novembro de 2016
No dia seguinte, Noblat, que também foi um dos entrevistadores do Roda Viva, publicou um tweet que mais parece um daqueles poemas horrorosos do não-eleito:
O presidente Michel Temer, dona Marcela e Michelzinho passam um agradável feriado no Palácio do Jaburú. O sol brilha em Brasília.— Blog do Noblat (@BlogdoNoblat) 15 de novembro de 2016
Só faltou uma mesóclise para dar mais branquitude para a chapa do Noblat. Há dois anos, porém, o jornalista global recorria à clássica definição de Millôr para o jornalismo:
Millôr Fernandes disse: "Jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados".— Blog do Noblat (@BlogdoNoblat) 18 de abril de 2016
Parece que o grupo Globo virou mesmo um grande armazém, já que o Hipster da Federal apareceu mais na Globo que os milhões recebidos por um ministro em uma conta na Suíça. E para isso bastaria ele ter aparecido uma única vez.
Na quarta-feira, tivemos outro caso emblemático dessa nova era. A Câmara foi invadida por um bando de lunáticos pedindo o “fim do comunismo” e uma intervenção militar.
Esse caso específico parece ser de ordem psiquiátrica, mas faz parte do fenômeno social. O sentimento anticomunista que persiste desde a Guerra Fria tem muito mais poder de enfeitiçar mentes e corações do que a frieza da realidade.
Um dos manifestantes teve a proeza de ver no círculo vermelho da bandeira do Japão – exposta num painel artístico em homenagem aos 100 anos da imigração japonesa – uma prova cabal do comunismo do governo Michel Temer.
A turba ensandecida chegou a subir à mesa da presidência para gritar “General aqui! General aqui!”.
Isabella Trevisani, uma intervencionista militar de apenas 20 anos, confirmou o delírio: “A ideia é não sair daqui enquanto não aparecerem os militares”.
Depois de agredirem e cuspirem em seguranças da Câmara, um dos paranoicos afirmou: “Nós vamos sair. Somos ordeiros e pacíficos. Só estamos aguardando a presença do General que está vindo.” Certamente esperavam um triunfante Napoleão adentrando a Câmara montado em seu cavalo branco.
O programa Radioatividade da rádio Jovem Pan falou durante mais de 6 minutos sobre a invasão e achou por bem ignorar o fato de que os invasores eram intervencionistas militares fazendo apologia da ditadura. Os ouvintes que se informaram apenas pelo programa, ficaram com a informação de que aquilo era apenas o povo revoltado contra a “política da safadeza”.
Na quinta-feira, um dia após a prisão de Sérgio Cabral, a Rádio Gaúcha perguntou a Aécio se ele tinha medo da Lava Jato. Uma pergunta óbvia, já que o senador é um dos recordistas em citações nas delações da operação e, em uma delas, aparece preocupado com as suspeitas em torno do seu amigo Cabral. Com tom indignado, Aécio respondeu com outra pergunta: “Por que teria medo? Não entendo. Não entendi bem a pergunta. Por favor, seja mais claro.”
O senador, visivelmente perturbado com a questão, parece não estar acostumado com jornalistas que o tiram da zona do conforto da pós-verdade. Ainda mais ele, que “seria o primeiro a ser comido” pela Lava Jato, segundo Machado em conversa com Romero Jucá.
E por falar em Romero, temos aqui mais um magnífico exemplo de pós-verdade dessa profícua semana. Ele se afastou do governo após ser pego articulando maneiras de interromper a Lava Jato e, passado um tempo em off, foi escolhido por Temer para ser o líder do governo no Congresso. A Operação Estanca Sangria volta a ter um de seus mentores na linha de frente.
João Doria Jr, invasor de terra pública e acusado por correligionários de comprar votos nas prévias tucanas, comentou as prisões de Garotinho e Cabral com essa pós-verdade gourmetizada: “Esses são temas do Rio de Janeiro. Aqui em São Paulo é Geraldo Alckmin e João Doria. É outra história.” Paulo Preto e Fernando Capez que o digam!
A fartura de fatos que comprova o contrário já não interessa nem faz mais sentido. Junior parece estar mesmo em perfeita sintonia com o espírito da atualidade, tanto que foi eleito vendendo uma imagem de não-político, após construir sua carreira escorado na mais pura politicagem.
Ainda na quinta, o Cabo Daciolo usou o plenário da Câmara para tentar converter o infiel Michel Temer. Munido de uma missão dada por Jesus Cristo, esse grande expoente da pós-verdade brasileira sapateou na laicidade do Estado e gritou: “Presidente Michel Temer, assim mandou dizer o Senhor para ti: abandone o satanismo e venha correndo para Deus!”.
Ou seja, o nobre deputado usou seu mandato para tentar catequizar o presidente com base num boato antigo que diz que Temer é satanista. É surreal, mas coerente com seu currículo político, já que Daciolo defendia arduamente Jair Bolsonaro quando estava no PSOL.
Que semana, meus amigos! Tivemos um episódio de Black Mirror por dia. Um mais perturbador que o outro. Não quero assustar ninguém, mas gostaria de lembrar que 2018 é logo ali, e Jair Messias Bolsonaro será candidato à Presidência da República.
Nenhum comentário:
Postar um comentário