O cinismo do golpe — Sobre máscaras e outras performances políticas
Por Marcia Tiburi, na Revista Cult
Podemos nos perguntar em que momento começou o golpe atual. O golpe tem base neoliberal e transita como uma “tecnologia econômica” na forma de um “rodízio” pelos países democraticamente fragilizados a partir de razões de mercado que agregam corporações e Estados internacionais e os grupos que continuam tratando o Brasil como colônia desde dentro.
O processo de impeachment faz parte do golpe atual, que faz parte de uma sucessão, um “continuum” de golpes dados no Brasil ao longo da história.
O golpe de Dilma Rousseff é o terceiro grande golpe e tem motivos comuns com os golpes de Getúlio Vargas e de João Goulart, que entraram para a história como heróis. Dilma sobe ao mesmo panteão. E, como eles, estava do lado do povo.
Não há base jurídica para o impeachment da presidenta, mas as nefastas condições políticas são evidentes. Os donos do poder querem a parte que julgam sua.
O povo, subestimado nesse processo, manipulado e aviltado, sabe que está sendo enganado ainda que a extensão da catástrofe social não seja de todos conhecida. O povo sabe que o golpe é contra ele mesmo, contra o próprio povo ainda que as televisões e jornais tradicionais queiram mostrar diferente e anestesiem a população para que ela fique dócil.
A máscara cínica
O golpe foi bem orquestrado, mas como toda mentira deixou falhas. No entanto, o golpe não é uma mentira qualquer. Na gradação da desonestidade, a mentira tende a ser mais direta e menos perversa do que as mentiras revestidas de cinismo como este golpe.
Sabemos que o melhor modo de mentir é sendo cínico. O mentiroso que mente para si mesmo não perde a compostura, tende a ganhar na força da expressão, mesmo quando a expressão é bizarra. Basta que ele se mantenha como está e finja não ouvir argumentos contrários.
O cinismo sempre foi uma tática de poder, tanto do poderzinho diário do qual fazem uso as pessoas comuns, quanto dos grandes poderes que implicam a ordem política no Brasil e no mundo.
O cinismo é uma força bruta, uma força venenosa, que tem o poder de cancelar o pensamento e a ação do outro. Somos enredados no cinismo sem chance de escapar dele porque não sabemos o que fazer com quem mente descaradamente.
Ontem, uma cena muito curiosa foi protagonizada pela advogada Janaína Paschoal, que se tornou uma espécie de personagem emblemática do golpe ao apresentar-se chorando e rindo na hora de sua fala. O que essa encenação, em que afetos manipulados estão em jogo, vem nos dizer?
Assim como seu choro poderia expressar emoção, vergonha, medo, pena, o que seu riso vem nos dizer? O que a presença desses dois modos de aparecer ao mesmo tempo sinalizam para nós que a ouvimos? Por que chorar e sorrir ao mesmo tempo? Não podemos avaliar a pessoa em sua natureza ou essência, mas podemos tentar entender a função e o efeito da sua performance política em um momento tão crucial.
O sorriso da advogada na forma de um esgar, algo realmente muito curioso, levou muitas pessoas nas redes sociais a levantarem a semelhança com o sorriso do curinga tal como aparece em uma das versões do filme de Batman protagonizado pelo falecido ator Heath Ledger. Sabemos que esse personagem não ria naturalmente, mas ria para esconder seu ressentimento que ele tinha transformado em brutalidade e violência, arrogância e maldade.
Na performance da advogada, emoções altamente manipuladas revelam o que está em jogo no momento do golpe atual. O golpe é tão descarado que procura uma máscara. A advogada mostrou, tanto na face, com seu estranho riso, quanto na fala, o que está em questão. Ao dizer que entende como advogados internacionais chamam o que está acontecendo de “golpe”, ela conseguiu desmascarar-se. Ao lançar mão dos netos da presidenta, o que poderia ser apenas o jogo sujo do golpe apresentou-se em sua má retórica e falta de argumentos.
Ao falar de Deus, tentou transformar o cinismo em recurso deixando notória a falta de respeito para com quem tem fé. Má fé no lugar da boa fé de uma população de mais de 50 milhões de votos que ainda acredita na democracia.
Muitas vezes, as mulheres são eleitas como musas, prática patriarcal comum, e Janaína Paschoal poderia ter se tornado a musa do golpe, mas ela acabou com a mascarada que os demais algozes, políticos, juristas, advogados, sustentam com todas as suas forças. Eles seguirão cínicos, mas o povo sabe que o são. O que o povo fará com isso? Essa pergunta tem o poder de mudar nosso destino.
A presidenta, duas vezes eleita, julgada uma vez na ditadura e julgada novamente sem ter cometido nenhum crime, ao contrário de seus algozes, manteve a compostura durante todo o tempo.
Dilma Rousseff é, nesse momento, o emblema da democracia, incansável, justa, ciente, pronta para a luta infindável que a constitui.
Marcia Tiburi - Escritora e Filósofa
Postado em O Cafezinho em 01/09/2016
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