" Ué, cadê a árvore papai? "



Nossa mania de perfeição nos tornou perfeitos imbecis


André J. Gomes
"Ué! Cadê a árvore, papai?”, pergunta meu filho João tomado de susto, os olhinhos tristes, a boca tremendo angústia, um segundo antes de desabar em total decepção. A árvore que desde sempre vivia em nosso caminho diário, e que ali estava até o dia anterior, desaparecera em mistério.


Sou desses pais separados que fazem gosto e questão de estar junto aos filhos. De segunda a sexta-feira, busco meu menino na escola para nosso almoço em família. Ele e eu. É das coisas simples que suavizam o peso da minha rotina de operário. 

Até ontem, todos os dias, no caminho que fazemos entre a escola e o restaurantinho de comida por quilo, João corria na minha frente e escalava feito um filhote de bicho uma árvore de porte médio, tronco largo, inclinado, fácil de subir, inofensiva. Ideal para um menino de sete anos muito dado à fantasia e pouco afeito às proezas físicas.

Hoje foi diferente. Quando chegamos para encontrá-la, a árvore não mais existia. Até a véspera, nada havia de estranho. Estava lá, gozando de saúde plena, bafejando oxigênio na vida. 

Hoje, ali restava um vazio súbito, inexplicável. No quadrado de terra cercado de calçada onde ela nos esperava pontual e generosa, havia nada além de um toco morto, serrado rente ao chão.

Pergunto ao zelador do prédio em frente. Cadê a árvore? E ele me explica sem mais o quê: “O pessoal resolveu cortar. Atrapalhava a passagem”.

O pessoal. “O pessoal resolveu cortar.” Assim, do nada. No silêncio covarde da noite, “o pessoal” foi lá e abduziu a árvore do mundo sob a acusação de que ela “atrapalhava a passagem”. 

Muito bem. Agora o mundo está perfeito. Não há mais violência, corrupção, má distribuição de renda, trânsito, ignorância, guerra, doenças. Nada! A passagem está livre. A árvore, maldito empecilho ao conforto do “pessoal”, não mais existe. Pronto. Agora a vida pode seguir impecável.

Muito bem, senhores responsáveis pelo tempo das árvores de porte médio que resistem nas calçadas estreitas das cidades modernas. Bom trabalho, respeitáveis mandatários dos canteiros e jardins públicos, ministros do desmatamento urbano. Sua sanha de aperfeiçoar a civilização é formidável!

Mas sabe o quê? Os senhores bem podiam dar à pobre da árvore uma chance, não? Podiam ao menos, antes de executá-la de modo sumário, tê-la submetido a um julgamento justo. E que se reunissem à sua sombra as testemunhas de acusação e as de defesa.

As primeiras desfiariam seu rosário de ódios recolhidos da pobre ré. “Atrapalha a passagem”; “a gente não vence limpar a calçada que vive suja de folha”; “à noite deixa a rua mais escura e favorece a ação dos assaltantes” e outros argumentos certeiros.

Já as testemunhas de defesa, decerto em número mais modesto, responderiam com humildade e esperança e boa intenção suas razões simples. A pobrezinha não faz mal a ninguém. Quando muito, obriga o pedestre a desviar de seu tronco, inclinar a cabeça para não raspá-la em um galho travesso. Certo é que suas folhas soltas forrando o chão oferecem o devido trabalho ao pessoal da limpeza, mas nada grave, obtuso, hediondo, passível de execução sumária. Sem dúvida a árvore perderia a peleja, como é de costume no lado mais fraco das coisas. Mas não seria sem luta.

Ah… senhores. Sou capaz de poucas afirmações certeiras na vida, mas esta eu asseguro sem medo: a árvore era boa. Dava sombra, absorvia o gás carbônico, liberava oxigênio, melhorava a qualidade do ar, ajudava a equilibrar a temperatura. E fazia a festa do meu filho. Seu tronco inclinado era cavalo, foguete, jangada, dragão, dinossauro ou tão somente árvore na fantasia de um menino imaginoso.

É isso, cavalheiros. Aproveitem a vitória. Seu caminho ora vai perfeito. Livre da inconveniência do tronco irregular. Sem folhas caídas na calçada esperando que alguém as varra. Sem assaltantes noturnos escondidos na copa escura, esperando para pular na frente de suas vítimas e gritar “é um assalto”! Sem um pai e seu filho fazendo festa durante o dia sob uma árvore torta de porte médio, enquanto o mundo inteiro trabalha afoito, na custosa busca de sua ansiada e impossível perfeição.


Postado no Bula


Nenhum comentário:

Postar um comentário