Não matarás ! Uma lembrança de Dostoievsky sobre a pena de morte




Marco Aurélio Weissheimer

O brasileiro Marco Acher foi executado, por fuzilamento, sábado, na Indonésia. Ele foi condenado à morte por tráfico de drogas. Há outro brasileiro, Rodrigo Goularte, que também está no corredor da morte na Indonésia, pelo mesmo crime. Arrisquei mencionar o ocorrido para um taxista aqui em Porto Alegre na tarde deste sábado. Já imaginava qual seria a reação e minha expectativa não foi frustrada. 

O taxista defendeu a execução, a introdução da pena de morte no Brasil e sua aplicação a milhares de “bandidos e políticos”. “Vai ter uma fila quilométrica para as execuções”, emendou. Essa seria, para ele, a imagem de um Brasil decente: um país com filas de condenados aguardando para serem executados. Além disso, criticou a presidente Dilma Rousseff por ter pedido clemência ao presidente da Indonésia. Fiquei calado, ouvindo e pensando como é doloroso e difícil enfrentar esse debate.

Em um ensaio sobre a pena de morte, Norberto Bobbio faz uma retrospectiva histórica sobre o debate em torno da pena de morte, elencando argumentos favoráveis e contrários à prática. Não se trata de uma mera lista. Bobbio tem posição a respeito, que fica explicitada logo no título do ensaio, “Contra a pena de morte” (publicado no Brasil no livro “A Era dos Direitos”, Editora Campus). 

Logo no início ele adverte que o debate sobre a abolição da pena de morte, de uma perspectiva histórica, mal começou.
“Durante séculos, o problema de se era ou não lícito (ou justo) condenar um culpado à morte sequer foi colocado. Jamais se pôs em dúvida que, entre as penas a infligir a quem violou as leis da tribo, ou da cidade, ou do povo, ou do Estado, estivesse também a pena de morte (…)”, escreve Bobbio.
Será apenas no século XVIII que encontraremos pela primeira vez um debate aprofundado sobre a licitude ou conveniência da pena de morte, com a obra de Beccaria, “Dos Delitos e das Penas” (1764). “Trata-se da primeira obra”, assinala Bobbio, “que enfrenta seriamente o problema e oferece alguns argumentos racionais para dar-lhe uma solução que contrasta com uma tradição secular”. O debate sobre a pena de morte e, em particular, contra a pena de morte, tem, portanto, cerca de 250 anos de vida, um período muito pequeno diante de uma história de milhares de anos de mortes, crimes, punições e execuções.

Em seu ensaio, Bobbio resume algumas das principais teses utilitaristas, retributivistas e abolicionistas, a favor e contra a pena de morte. Para quem quiser conhece-las, o link para a íntegra do artigo está disponível no início desse texto. 

Como defensor da extinção da pena de morte, gostaria apenas de destacar a passagem final do artigo de Bobbio onde ele lembra uma passagem de Dostoievski e aponta o que considera ser o postulado ético central que embasa a posição contra a pena de morte. Ele identifica esse princípio a partir de uma limitação da tese utilitarista contra a pena de morte: “o limite da tese está numa pura e simples presunção, a de que a pena de morte não serve para fazer diminuir os crimes de sangue. Mas se se conseguisse demonstrar que ela previne tais crimes?” – indaga.

Neste caso, observa, teríamos de recorrer a outra instância de caráter moral, a um princípio posto como absolutamente indiscutível. E esse argumento, defende, só pode ser derivado do imperativo moral “não matarás”, que deve ser acolhido como um princípio de valor absoluto. 

Bobbio antecipa uma objeção a essa posição: 
“Mas como? Poder-se-ia retrucar: o indivíduo tem o direito de matar em legítima defesa, enquanto a coletividade não o tem?”
Não, a coletividade não tem esse direito, responde Bobbio:
“A coletividade não tem esse direito porque a legítima defesa nasce e se justifica somente como resposta imediata numa situação na qual seja impossível agir de outro modo; a resposta da coletividade é mediada através de um processo, por vezes até mesmo longo, no qual se conflitam argumentos pró e contra. Em outras palavras, a condenação à morte depois de um processo não é mais um homicídio em legítima defesa, mas um homicídio legal, legalizado, perpetrado a sangue frio, premeditado. Um homicídio que requer executores, ou seja, pessoas autorizadas a matar. Não é por acaso que o executor da pena de morte, embora autorizado a matar, tenha sido sempre considerado como um personagem infame (…)”.
E acrescenta:
“O Estado não pode colocar-se no mesmo plano do indivíduo singular. O indivíduo age por raiva, por paixão, por interesse, em defesa própria. O Estado responde de modo mediato, reflexivo, racional. Também ele tem o dever de se defender. Mas é muito mais forte do que o indivíduo singular e, por isso, não tem necessidade de tirar a vida desse indivíduo para se defender. O Estado tem o privilégio e o benefício do monopólio da força. Deve sentir toda a responsabilidade desse privilégio e desse beneficio”.
Bobbio admite que esse raciocínio pode ser tachado de “moralismo ingênuo, de pregação inútil.” Mas onde reside, então, a razão da nossa repugnância frente à pena de morte? – questiona. Ele responde:
“A razão é uma só: o mandamento de não matar. Não vejo outra. Fora dessa razão última, todos os demais argumentos valem pouco ou nada; podem ser contraditos por argumentos que têm, mais ou menos, a mesma força persuasória. Dostoiévski o disse magnificamente, quando pôs na boca do Príncipe Michkin as seguintes palavras: “Foi dito: ‘Não matarás.’ E, então, se alguém matou, por que se tem de matá-lo também? Matar quem matou é um castigo incomparavelmente maior do que o próprio crime. O assassinato legal é incomparavelmente mais horrendo do que o assassinato criminoso.”
Na mesma direção, Bobbio cita duas passagens do escritor francês Victor Hugo (outro defensor da extinção da pena capital), em “Os Miseráveis”:
“O patíbulo, quando está lá, erguido para o céu, tem algo de alucinante. Alguém pode ser indiferente quanto à pena de morte e não se pronunciar, não dizer nem sim nem não; mas isso só enquanto não viu uma guilhotina. Quando vê uma, o abalo é violento: ele é obrigado a tomar partido a favor ou contra.”
A segunda passagem narra uma experiência de Victor Hugo, quando tinha dezesseis anos e viu uma ladra que um carrasco marcava com ferro em brasa:
“Ainda conservo no ouvido, quarenta anos depois, e sempre conservarei na alma, o espantoso grito da mulher. Era uma ladra; mas, a partir daquele momento, tornou-se para mim uma mártir.”
A distância que existe entre essas palavras e o desejo de filas de execuções manifestado pelo taxista dá bem uma ideia da distância que ainda precisa ser percorrida para que o “Não matarás!” deixe de ser um princípio contra intuitivo e estranho à nossa vida cotidiana.


Postado no blog RSUrgente em 18/01/2015


2 comentários:

  1. Tudo que leva à execução, sentença de morte, não define um fim, somente punição e pavor. Controle por meio do medo. Não concordo com pena de morte.

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  2. Oi, concordo contigo, também sou contra pena de morte. Acho que as penas de prisão devem ser mais longas e, integralmente, cumpridas, sem redução ou saída condicional, para os crimes de homicídio, latrocínio, feminicídio, sequestro e estupro. Acho que não tem diferença entre o criminoso que matou e o Estado que mata aplicando a pena de morte, pois, neste caso, o Estado se iguala ao criminoso. Abraço e tudo de bom.

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