Por que é racismo chamar um negro de macaco?


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Leandro Beguoci,  
Trivela

Venha passear comigo por São Paulo durante alguns minutos – e sem trânsito. É uma viagem no tempo com direito a carroça e alguns esbarrões em um amontoado de gente falando um monte de línguas ao mesmo tempo: italiano, árabe, espanhol, uma porção de dialetos.

Há muitos e muitos anos, o bairro de Higienópolis foi construído em uma encosta entre a avenida Paulista e o centro da cidade. Ele ficava entre os casarões de quem era muito rico e morava no alto do morro (a Paulista) e entre o coração paulistano no qual trabalhavam milhares de pessoas (o centro). 

Era um bairro de classe média por definição social e geográfica. Mas você já pensou por que ele se chama Higienópolis? O nome não deixa dúvida. Ele era um bairro higiênico, limpo, em contraposição a outros lugares da cidade.

São Paulo era uma cidade muito menor naquela época. Bairros muito próximos ao centro e à Paulista, como a Barra Funda e o Bexiga, estavam abarrotados de imigrantes italianos. Eles e os espanhóis formavam o grosso dos trabalhadores industriais da cidade, e eles fediam muito.

As casas não tinham saneamento básico, as pessoas suavam muito e, para piorar, italianos consumiam muita carne de porco e usavam meticulosamente cada pedaço do bicho – a banha rendia um óleo com várias utilidades. Isso também fedia um bocado.

Higienópolis foi construída em contraposição a esses bairros de imigrantes fedorentos (entre esses imigrantes, aliás, estavam os meus avós). Era um bairro higiênico contra os bairros sujos.

Isso explica por que meu avô, assim como outros palmeirenses da velha guarda, jamais aceitou o apelido de porco colado aos torcedores do Palmeiras. 

Para ele, o porco lembrava as ofensas que ele e os colegas sofriam naquela São Paulo tumultuada das primeiras décadas do século. O porco significava humilhação, falta de oportunidades, segregação em bairros distintos. A minha geração, que teve um mundo de oportunidades, nunca sofreu esse preconceito. Para nós, o porco virou “festa no chiqueiro”.

Agora, vamos ao presente. A torcedora do Grêmio que foi flagrada xingando o goleiro Aranha, do Santos, de macaco, disse que não tinha nenhuma intenção racista. 

Pode ser verdade – o benefício da dúvida é o que separa a democracia da barbárie. Provavelmente, a menina não é racista mesmo e fez aquilo sem pensar, levada pela multidão. Pode ser, não tenho ideia. 

Aliás, a misoginia que se apoderou dos xingamentos a ela mostra bem o quanto as pessoas, às vezes, não conseguem ligar os pontos do preconceito – chamar alguém de vaca e vagabunda só reforça os preconceitos contra as mulheres. Enfim, isso é outro papo.

Mas o fato é que macaco é xingamento, sim, é racismo, sim – mesmo que a gente não ligue os pontos. Vamos por passos, num caminho lógico, eu e você caminhando nesta longa estrada da vida.

1) Ao chamar um negro de macaco, você está fazendo uma associação entre um humano e um não-humano.

2) Essa associação é feita, principalmente, por causa da cor.

3) Ao fazer essa associação, grosso modo, você está dizendo que um negro está um passo abaixo na escala da evolução. Afinal, você está chamando a pessoa de macaco.

4) Portanto, você está dizendo que negros são animais. Animais têm menos direitos do que homens.

Ao longo da história, a escravidão e o preconceito foram justificados com argumentos semelhantes aos que, no fundo, associam negros a macacos.

O primeiro passo para aplicar a violência é desumanizar a vítima. Ladrões desumanizam os roubados, policiais ruins desumanizam os cidadãos, tiranos desumanizam a população, como aconteceu na Alemanha e no Camboja.

Os fazendeiros americanos racistas que financiavam e participavam da Ku Klux Klan justificavam a escravidão negra, entre outros argumentos, com a suposta maldição de Cam, filho de Noé. Em vez de cobrir o pai, que estava nu e bêbado, Cam chamou todo mundo para ver o pai pelado. Segundo o relato bíblico, Noé amaldiçoou Cam. Por alguma razão que se perdeu no tempo, Cam virou antepassado dos negros – embora isso não esteja escrito em nenhum lugar da Bíblia. 

Os racistas, então, justificaram boa parte do racismo dizendo que estavam apenas se vingando do filho debochado de Noé. Os negros viraram pessoas inferiores e amaldiçoadas, que mereciam ser escravizadas por um fato da natureza. A mesma coisa aconteceu com outros grupos ao longo da história. Os judeus, os árabes, os ciganos, os gays. 

Para persegui-los, é preciso tirar a humanidade dessas pessoas e arrumar algum argumento, algum raciocínio perverso, para colocá-las num degrau abaixo de humanidade.

Hoje não há escravidão negra no Brasil. As condições de vida dos negros e mulatos melhoraram ao longo das décadas por causa de uma série de políticas sociais. 

Mas é inegável que essas pessoas ainda continuam sofrendo o peso de séculos de preconceito, e isso teve consequências econômicas. 

Os negros e mulatos não são maioria nas favelas, nas piores escolas públicas e nas faculdades particulares mais mambembes à toa. Após a abolição, eles ficaram num limbo econômico que teve consequências por décadas.

Enquanto os imigrantes brancos e orientais tiveram acesso a emprego e terra, muitas vezes subsidiada pelo governo federal, os negros não tiveram nenhuma facilidade para comprar suas propriedades, arrumar trabalho e tocar a vida.

A Lei de Terras brasileira, de 1850, tornou a vida dos escravos e dos descendentes bastante difícil. 

Para um ex-escravo, era quase impossível ter alguma coisa. Além disso, brancos sempre puderam fazer poupança na Caixa Econômica, desde os tempos do império. Eles podiam guardar dinheiro e comprar alguma coisa para eles no futuro. Negros não podiam. 

Quando a lei foi abrandada, negros só puderam fazer algum depósito se recebessem autorização dos seus senhores. 

Propriedade privada e economia de dinheiro para planejar o futuro, dois itens essenciais do capitalismo, foram negadas aos negros brasileiros durante muitos anos. Somado ao preconceito de que negros eram amaldiçoados, bem, você já sabe o resultado: o bem estar dessas pessoas foi atrasado por décadas. Os negros saíram atrás na corrida de obstáculos, e tinham mais obstáculos a superar.

Essa é uma das tantas razões por que o porco, ao longo do tempo, foi perdendo sentido para os filhos e netos de imigrantes italianos. A humilhação se diluiu no tempo, e hoje Higienópolis tem vários filhos e netos das pessoas que, um dia, sofreram discriminação.

Mas, enquanto as oportunidades se multiplicavam para uma parte da sociedade, elas eram negadas a outra parte. Uma das razões para isso é que, lá atrás, chegou-se ao consenso de que negros MERECIAM menos direitos do que as outras pessoas.

Obviamente, não é o caso de pregar uma guerra de brancos contra negros ou de negros contra brancos hoje.

Há outros meios de resolver essas injustiças históricas, e várias dessas medidas vêm sendo tomadas pelos governos brasileiros desde a redemocratização, com a Constituição de 1988. 

Essas medidas poderiam ser melhores, poderiam ser mais eficientes, mas ao menos elas estão acontecendo – e ainda há um caminho enorme a percorrer. Para que elas possam continuar acontecendo, é preciso continuar combatendo o racismo em todas as formas – inclusive as futebolísticas.

Portanto, é preciso combater alguns xingamentos nos estádios, até mesmo os mais ingênuos. 

Chamar alguém de macaco, hoje, é dar uma contribuição cruel à desumanização dos negros. 

Mesmo sem pensar, a torcedora do Grêmio se somou aos racistas de todo o planeta que adorariam ver uma sociedade segregada entre gente de cores diferentes. É um sonho maluco, mas que já teve consequências brutais ao longo da história.

Os estádios de futebol não são uma área isolada da sociedade. Neles se manifesta livremente o que há de melhor e pior em cada um de nós.

Combater o racismo nos estádios é uma forma poderosa de combater o racismo na sociedade. 

Por isso que macaco não é folclore do futebol, como chegou a dizer um ex-presidente do Grêmio. Ele é só uma forma fossilizada de dizer que negros, no final das contas, são pessoas inferiores.

Não é brincadeira nem mimimi. Talvez um dia, quando a diferença entre negros e brancos acabar, macaco deixe de ter o peso que tem hoje. Enquanto isso, continua sendo absurdamente cruel. Meu avô, que detestava ser chamado de porco, que o diga…

PS: Uma história pessoal, rapidinho. Cresci num bairro no qual havia poucas famílias brancas. A maioria dos meus vizinhos era negra ou mulata.

Naqueles anos, fui chamado de alemão e branquelo infinitas vezes. Aquilo nunca teve nenhuma consequência negativa na minha vida. Porém, a cor da pele dos meus amigos teve uma série de consequências negativas para a vida deles. 

Quando íamos ao centro da cidade, a pé, às vezes a polícia nos parava. Formávamos um grupo de às vezes dez pessoas, no qual eu era o único branco. Os nove negros e mulatos tomavam um esculacho. 

Eu loiro, olhos claros, era colocado no canto. O policial me olhava com aquela cara de “o que você está fazendo com essa gente?” Eu levava bronca. Meus amigos, tapas na costela. Nenhum de nós jamais cometeu qualquer crime. Éramos apenas adolescentes indo ao centro da cidade para se divertir.


Postado no site Pragmatismo Político em 08/09/2014


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