As ilustrações acima são de Marcelo Tas apresentador da Tv Bandeirantes e um dia normal no trânsito da cidade de São Paulo
Alexey Dodsworth Magnavita em seu perfil no Facebook
Recentemente, numa discussão tuiteira, o comediante Marcelo Tas criticou o programa eleitoral do candidato à presidência, Eduardo Jorge (PV). Em sua propaganda, Eduardo Jorge recomenda às pessoas que usem menos os carros.
Ao que parece, Tas entendeu que o candidato havia dito para as pessoas não usarem carros. Entendeu errado, e este tipo de coisa acontece. Após disparar uma ironia contra Eduardo Jorge, perguntando como fariam as pessoas que não têm “vida mansa” como a do candidato, Tas obteve como resposta um singelo soco com luva de pelica: ele, Eduardo Jorge, é médico sanitarista. E se move como a maioria das pessoas no Brasil: pega metrô, ônibus, anda a pé, usa bicicleta.
Eduardo Jorge, elegantíssimo, nem sequer levantou a seguinte bola: teriam os brasileiros sem carro uma “vida mansa”? Fica subentendido, contudo, e a resposta todos nós sabemos: a última coisa que alguém que só pode andar de transporte público tem é uma “vida mansa”.
Tas não se deu por satisfeito e acusou Eduardo Jorge de hipocrisia, ameaçando postar uma foto do Eduardo dentro de um carro. Convenhamos, ameaça ridícula, considerando que em momento algum o candidato negou andar de carro. Ele não disse “não andem de carro nunca”. Ele pediu o que qualquer pessoa minimamente saudável e razoável já sabe: use menos o carro.
O que significa este pedido? Este ano, por ocasião do Encontro Da Nova Consciência em Campina Grande [PB], tive a oportunidade de assistir a uma das palestras mais interessantes deste evento, considerando todas as que já vi desde que – muitos anos atrás – passei a frequentá-lo. O psicólogo Lucas Jerzy Portela deu uma conferência excelente sobre os problemas físicos e psíquicos desencadeados pela carrocracia.
Não pretendo detalhar, nem reproduzir perfeitamente o que Lucas disse. Vou sintetizar as coisas mais importantes, na minha opinião:
1. O uso excessivo de carros causa diversos males físicos e psicológicos.
2. O Brasil peca por se nortear em torno de uma veneração ao veículo automotivo por combustão: o carro.
Quais as soluções apontadas por Lucas? Sim, ele deu várias soluções práticas, e em nenhum momento estabeleceu um manual ou guia que devesse ser seguido, com fórmulas prontas ao estilo de imperativos categóricos kantianos.
O que ele solicita [na verdade, não ele apenas; o movimento pela libertação da carrocracia é muito mais amplo do que a existência do palestrante] é que as pessoas sejam razoáveis para o bem de sua própria saúde. E ser razoável significa pensar.
Por exemplo: se o lugar para onde você vai fica a dois quilômetros de onde você está, como você deveria se locomover?
A não ser que você tenha restrições de movimento ou quaisquer outros problemas que justifiquem o carro, você deveria ir a pé. Não faz sentido ir de carro, ônibus ou táxi. Caminhar estes dois quilômetros vai fazer bem para sua saúde. Isso satisfaz inclusive outro ponto salientado por Lucas: a atividade física deveria ser processual, não pontual. Nós deveríamos estar em atividade física constante, ao invés de apenas dedicar uma hora por dia a isso.
Vamos a um exemplo prático e alguns contrastes: da minha casa até minha academia, são 800 metros. Eu vou a pé, todos os dias. Subo uma escadaria considerável e vou caminhando, já me aquecendo. Na volta, são mais 800 metros. 1,6 km de caminhada, sem contar o tempo na academia.
Eu conheço quem mora a 500 metros da minha mesma academia e vai até ela de carro. Além de ser mais um carro nas ruas [e um carro desnecessário, convenhamos], a pessoa ocupa uma vaga de estacionamento que poderia ser de outra pessoa que vem de um lugar mais distante.
Um argumento possível “ir de carro é mais seguro” simplesmente não cola, pelo menos não neste trajeto. Seria mais honesto se estas pessoas assumissem: “sou viciado(a) em meu carro”. E, claro, tentassem reformular a maneira de usar tal veículo.
Não se trata de instituir o Império da Bicicleta, a Tirania do Pedestre, ou algo assim. A depender da distância e do que se encontre no trajeto [ladeiras imensas, chuva torrencial etc], faz mais sentido usar outros veículos.
Fazer valer a razoabilidade é algo ao alcance de qualquer pessoa com inteligência normal e que não esteja profundamente adoecida pelo transtorno compulsivo carrocrático. O que se pede, é: pense no seu movimento pela cidade.
Quando vou para a USP, três vezes na semana, considerando o aperto do horário, eu vou de táxi, 17 reais até onde devo ir. Volto de ônibus, já que na volta não há pressa, o ônibus não vai lotado, e me deixa bem perto de casa.
Fiz uma experiência considerando meu trajeto até a escola onde aperfeiçoo meu inglês. Medi três vezes cada possibilidade.
De táxi, da minha casa até a escola, eu pago 24 reais e levo 30 minutos, às vezes mais, em decorrência do tráfego. É uma loteria. De ônibus+metrô, eu pago 4,65 reais e levo redondos 20 minutos. O máximo que já levei foram 25 minutos.
Qual o sentido de pagar cinco vezes mais e ainda chegar 10 minutos depois? O conforto de estar sozinho num táxi? O glamour de ouvir o taxista derramando suas opiniões sobre a existência? Comigo quase sempre acontece, eu devo ter uma magnífica cara de machista pra ter que ouvir as piadas que eles contam e outros comentários, sendo que só eles riem até sucumbirem ao silêncio constrangedor que imponho.
Não faz sentido no meu caso, principalmente considerando que o ônibus e o metrô não estão lotados no horário que eu vou para a escola. Se eu vou num horário em que o ônibus está lotado, pego o táxi até o metrô: 12 reais até a estação. Com mais 3 reais, pego o metrô e corto todo o congestionamento, e ainda ajudo a tornar as ruas menos congestionadas. Em 4 estações, chego à escola.
Cada caso, evidentemente, é um caso. O fato é: temos carros, temos ônibus, podemos andar a pé, temos metrôs, há quem use bicicleta. Com tantos recursos à disposição, alguns bem razoáveis a depender do horário, ainda há quem use apenas o carro. Exclusivamente o carro, sempre.
E é nesta parte que alguém vai dizer “Pra você é fácil falar, eu moro na Zona Oeste e trabalho na Zona Leste! De transporte público minha vida seria uma merda!”. Se você pensou em usar este argumento, simplesmente pare e leia tudo novamente. Eu não estou dizendo que carro é proibido, mau e feio, não estou dizendo que carros são o demônio. Eduardo Jorge também não disse isso em momento algum. Se sua situação pede um carro, use-o.
Lucas, o psicólogo, chega a ser mais duro sobre isso. Em sua palestra, ele disse que não faz o menor sentido morar tão longe do trabalho. Sugere que, se for seu caso, mude de casa, ou de trabalho. Claro, falar é fácil e nem todo mundo pode se dar a este luxo. Mas faz sentido considerar isso. Sua qualidade de vida aumentará substancialmente, se você conseguir morar perto do trabalho. A diferença será percebida em seu corpo e sua mente.
20 centímetros, é o tamanho de nossas mãos espalmadas. Olhe pra sua mão. Abra-a. Vislumbre a distância do mindinho ao polegar.
Em recente projeto informado pela prefeitura de São Paulo, Haddad anunciou que irá transformar o canteiro central da Avenida Paulista numa ciclovia permanente. Exatamente: aquele canteiro inútil será um pouco mais elevado e será uma ciclovia permanente. Além disso, passará a fibra ótica por baixo da avenida, retirando da Alameda Santos aquele aspecto horroroso de varal de quinta categoria. Sim, porque até os de Nápoles são mais charmosos.
Esta nova ciclovia vai tomar algum pedaço do trajeto dos carros? Sim. Vinte centímetros de cada lado. Isso mesmo, a extensão de sua mão espalmada.
Desespero, agonia: Haddad quer destruir São Paulo. Os donos de carros estão sendo oprimidos, coitadinhos. Vi de tudo subir em meu feed de notícias, hoje, desde reclamações mais moderadas até as completamente loucas: matem Haddad. Odiei o projeto. Ele vai acabar com a Paulista. Haddad quer oprimir os donos de carros [risos].
Meus caros, ninguém precisa oprimir donos de carros. Eles fazem isso uns com os outros, mutuamente, sempre que agem de maneira louca.
É claro, toda essa reclamação não é pelos vinte centímetros. Só mesmo muita má vontade e ódio a priori pra achar que vinte centímetros a menos de cada lado irá piorar ainda mais o tráfego da Avenida Paulista.
Aliás, é ódio a priori que parece funcionar contra Haddad e suas ideias: ele é do PT, odeiem-no.
Queria eu que Kassab ou qualquer outro prefeito do PSDB tivesse feito isso que Haddad agora ousa fazer. Aquele canteiro ridículo no meio da Paulista, um espaço inutilizado, se converterá em nova opção de trajeto veicular. Eu acho é ótimo.
A castração dos 20 centímetros do espaço para carros, sendo tomada como uma castração simbólica dos pintos carrocráticos, reflete apenas a má vontade diante de uma coisa que não muda o já existente: há um canteiro central largo e inútil na Avenida Paulista.
O que piora o tráfego da Paulista não são estes 20 centímetros a menos de cada lado. São novos carros. O que piora o tráfego da Paulista é gente sem noção que anda de carro por ali, sendo que poderia caminhar, pegar o metrô, a linha verde é ótima. Ou passar a usar a ciclovia a ser inaugurada.
Pausa. Novo exemplo, pra ficar bem ilustradinho: uma das pessoas que estuda na mesma escola de inglês que eu, mora ao lado da estação Brigadeiro. Nossa escola fica pertinho da estação Consolação. Esta pessoa tem a minha idade. E vai de carro. Ela poderia ir a pé, ela poderia ir de metrô, mas não, ela vai de carro. Ela é viciada. Em carro. Ela é louca. E esnobe. Um dia, perguntei a ela: “mas por que você vem de carro?”. Ela respondeu: “porque eu posso”.
Porque eu posso. Então tá, né? Só existe a senhora no mundo. Maluca.
O argumento de que São Paulo não é uma cidade europeia para ter tantas ciclovias procede de algum modo.
De fato, São Paulo não é Europa, parem de compará-la a Londres, isso ofende Londres. Ela foi feita para copiar Chicago e sua carrolândia. O relevo de altos e baixos não ajuda a quem quer andar a pé ou de bicicleta. Mas você não precisa andar de bicicleta por toda a cidade, ora!
Mas a principal diferença entre Sampa e as cidades europeias não está no relevo. Está na mentalidade. As Américas em geral, do norte ao sul, consideram o carro um símbolo de status e de poder. Europeus são diferentes, neste ponto.
Europeus andam, e como andam! Mesmo com o metrô maravilhoso deles. Eles andam. A imagem de gente de 70 anos, magra e definida, andando de bicicleta, é banal em várias cidades europeias.
Desde que vim morar em Sampa, há quase dez anos, só ouço reclamações sobre o trânsito, dos próprios paulistas natos.
Alternativas estão sendo dadas. A minha parte eu fiz: podendo ter carro, não o tenho. Não faz sentido em minha vida, não faz sentido em meus trajetos, se preciso de um, pego um táxi. Gasto menos do que gastaria se tivesse carro.
Você precisa ter um? Então tenha. Mas reveja seus hábitos, verifique se você faz alguma coisa parecida com as que descrevi neste post enorme.
A Europa, que tantos admiram, precisa primeiro ser trazida para dentro de você. Se você fizer isso, talvez os 20 centímetros saiam não apenas da Avenida Paulista. Sairão, também, da sua cintura americana carrocrática.
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