Albrecht Dürer, Melancolia
Arlindenor Pedro
Refletir, pensar, saber o porquê: eis uma das características marcantes dos seres humanos – que se acentua em alguns, noutros menos.
Sentir, provar, viver intensamente o que se apresenta, eis outra característica que também se acentua em uns, em outros não tanto.
Ser melancólico e saber o que é melancolia, creio, sempre acompanhou o homem em sua trajetória pela terra. Melancolia, então, tornou- se um grande enigma: por uns vivido, por outros pretensamente desvendado.
Embora presente em todas as culturas, foi entre os gregos da Antiguidade que se destacou a sua racionalização, ou seja, a real compreensão do que poderia ser.
Em Aristóteles conseguimos ter sua sistematizacão, que chegou até nós após ter influenciado várias sociedades. Ele faz uma clara associação entre melancolia e criatividade.
“Por que razão todos os que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência do Estado, à poesia ou às artes são manifestamente melancólicos, e alguns a ponto de serem tomados por males dos quais a bile negra é a origem (…)?” (Aristóteles, “O Problema XXX”).
Talvez guiados por essa pergunta, artistas procuraram retratar tal comportamento, cientistas buscaram suas causas e, naturalmente, melancólicos trataram de vivê-la na sua intensidade, como na Renascença e no Romantismo, quando era “doença bem-vinda”, pois enriquecia a alma.
Provavelmente a gravura Mellancolia, de Albrecht Dürer, produzida nesse período, seja a obra mais conhecida sobre o tema, atravessando os tempos e nos colocando frente a frente com tal enigma.
No nascimento da era industrial, com o texto Luto e Melancolia, de Freud, parece que nos aproximamos mais do momento de desvendá-la. Para Freud, a melancolia é um estado emocional semelhante ao processo de luto – semelhante, não igual, pois não há a perda que o caracteriza. A melancolia pode ocorrer sem causa definida.
Mas, na sociedade moderna, principalmente na contemporaneidade, constatamos que a melancolia não é mais bem-vinda, pois se choca com o espírito hedonista necessário a um “bem-viver” e a uma padronização normótica.
No início do século XX, Edward Bernays, sobrinho de Freud que vivia nos Estados Unidos, apropriou-se dos estudos do renomado cientista – que via no interior da mente humana áreas ainda não conhecidas, a que chamou de inconsciente, onde existiriam forças que moldavam seu comportamento.
Observou, então, que essas forças podiam ser controladas e desenvolveu, através de técnicas da psicanálise e de conselhos de seu tio, mecanismos que pudessem induzir ao consumo de bens, mesmo que desnecessários ao pretenso consumidor.
Em Bernays vemos a gênese do que foram as técnicas de propaganda e controle da mente que deram à humanidade tanto as grandes ações de propaganda do nazi-fascismo e do “socialismo real” da terceira internacional, quanto o desenvolvimento das campanhas de massa do agressivo capitalismo norte-americano. Aquilo que Guy Debord chamou de “espetáculo concentrado”, contido nas sociedades totalitárias e no “espetáculo difuso das sociedades ditas democráticas (“A Sociedade do Espetáculo”).
Após apropriar-se da força de trabalho do homem o capital parte, então, através das técnicas de propaganda (das quais Bernays é pioneiro), para o controle e a manipulação do que poderiam ser seus gostos, sentimentos, desejos… enfim: da sua alma.
É por demais conhecido o estudo de caso da campanha de marketing criada por Bernays no início do século passado, que levou as mulheres americanas a fumar em público (coisa até então inimaginável) .
Ocorre, então, que a melancolia se apresenta como necessária de ser controlada, por todos os meios disponíveis criados pela psicologia, pela psicanálise e pela psiquiatria.
No mundo racional, em que tudo é previsível, a melancolia não tem lugar. Tem que ser substituída por atitudes que todos julguem ter sob controle. As emoções serão então contidas, dando lugar a relações humanas totalmente reificadas.
Mas será que esse controle se dá na sua totalidade? Ou, deve a humanidade reagir a tal desígnio, traçado por um sistema sem sujeitos?
Mais ainda: a melancolia deve ser extirpada e tratada como uma doença hostil ao homem?
Na ação concreta da obra de arte, o artista exercita claramente a sua liberdade livrando-se das amarras a ele impostas. A obra que apresenta ao mundo, e que a partir daí não mais lhe pertencerá, torna-se um instrumento de libertação, que cada um viverá de acordo com seu senso estético, suas considerações. Tocar a sensibilidade, chegar até a alma – eis aí o caminho do artista.
No filme Melancolia, o cineasta dinamarquês Lars Von Trier nos coloca diante da temática da euforia e do sofrimento através de um filme em que não existe saída, e o final não é feliz. Tenta dessa forma tocar a nossa alma com um tema sobre o qual, no passado, debruçaram-se tantos pensadores.
Trata-se de um filme de atmosfera especial, cheio de simbolismos. O espectador escolherá sua identificação com os personagens, numa situação-limite de fim próximo – não o fim de um ser, individualmente, mas da totalidade do mundo onde vivemos, com suas cidades, florestas, animais etc.
Vemos então o embate entre os diversos personagens, com sua postura perante o mundo, destacando-se a relação entre duas irmãs com visões diametralmente opostas perante a vida e o fim que se aproxima.
Para horror de muitos, Von Trier nos faz refletir sobre a morte (no sentido da extinção da espécie) e o sofrimento, que tanto queremos afastar de nós. Apresenta-nos um planeta com uma trajetória de colisão determinada, sem possibilidade de mudanças: o que fazer em um momento que não há nada a fazer?
Diante do desespero de sua irmã, Justine, a personagem afetada pela melancolia, vê como perfeitamente lógico o desfechar trágico de suas vidas. Como se fosse o esperado: afinal, não fará nenhuma diferença no Universo!
Trazendo este tema para reflexão, Von Trier nos mostra a sensibilidade dos melancólicos e o seu desajuste em relação ao mundo real.
E ao mesmo tempo a necessidade de equilibrar razão e sentimento, em um mundo onde o deus da razão reina absoluto, afastando os sentimentos dionisíacos da humanidade.
Talvez não estejam errados os que veem no planeta, denominado Melancolia no filme, e que irá chocar-se com a Terra, uma alusão aos perigos que rondam a nossa e outras espécies em um mundo erigido pelo capitalismo, com sua devastação ambiental.
Salta aos olhos de todos que o planeta está em perigo. E, nesse sentido, os melancólicos são mais conhecedores do perigo que corremos .
Não restam dúvidas de que o homem contemporâneo, aprisionado por um sistema que não lhe permite ver a totalidade do mundo em que vive, tornou-se limitado e regrediu na sua capacidade de observar e sentir a realidade.
Muito por ter combatido e afastado a melancolia de sua existência, tornou pobre a sua alma – ao contrário do homem da Renascença e do Romantismo, este um ser mais completo por não temer essa forma de ser.
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