Quando a televisão surgiu, era rotineiramente acusada por devorar a atenção das pessoas e destruir a comunicação. Produtora de solidão, emburrecedora e responsável por distúrbios oculares eram o mínimo de que se acusava a TV.
Com a Internet alarmes semelhantes retornam, porém com um outro viés: os caminhos dessa terra de ninguém são potencialmente perigosos – alguns são predadores, outros são viajantes ingênuos que se aventuram por territórios dominados por tribos e cibercriminosos.
O risco de ser emboscado, espoliado e humilhado é considerável. Muitas vezes a aplicação da lei é incapaz de apanhar os trapaceiros, que se mantêm sempre à frente do jogo.
Esse é o tema do filme Disconnect do documentarista Henry Rubin (do documentário Murderball) em sua estreia em um filme com narrativa ficcional.
A partir de um roteiro escrito por Andrew Stern, Rubin apresenta um verdadeiro soco emocional para aqueles que convivem diariamente com Facebook, Twitter, Skype, webcams e smartphones: um retrato da crueldade desencadeada por ladrões que alegremente se escondem por trás de falsas identidades virtuais, desenterram informações pessoais e com algumas teclas pode ser capaz de destruir a vida de uma pessoa.
Baseado em casos reais, o filme Disconnect é elaborado em uma narrativa estilo crash-like, isto é, histórias paralelas que vão se conectando até se colidirem de forma dramática em um clímax final.
Nina (Andrea Risenborough) é uma ambiciosa jornalista televisiva local que faz uma reportagem investigativa sobre sites e chats pornôs que recrutam menores de idade, muitos deles fugitivos.
Ela estabelece uma conexão com Kyle (Max Thieriot), eles se encontram e Nina o convence a participar de uma entrevista sob a promessa de manter sua identidade oculta.
Quando as imagens são exibidas pela CNN (algo importante para a carreira da ambiciosa Nina), chama a atenção do FBI que passa a pressioná-la a revelar sua fonte. Tudo juridicamente se complica com o envolvimento afetivo da jornalista com a fonte.
O advogado da rede televisiva, Rich Boyd (Jason Bateman), é acionado. Mas ele tem problemas mais urgentes com o seu filho adolescente Ben (Jonah Bobo), um aspirante a músico, solitário e sem amigos na escola.
Ele é humilhado por outros alunos que decidem preparar-lhe uma armadilha virtual: inventam um perfil feminino na Internet que começa a mandar mensagens para Ben. No início se diz admiradora da sua música, até lhe enviar uma suposta foto sua nua. Pede para que Ben faça o mesmo. Logo a foto de Ben será espalhada pelas redes sociais, devastando-o emocionalmente a ponto de tentativa de suicídio.
Mike é pai de um desses meninos que planejam o cyberbullying. Ele foi um policial que trabalhava no Departamento de Crimes Informáticos e hoje é um detetive privado. Investigará fraudes com cartões de créditos de um casal (Derek e Cindy) devastados emocionalmente pela perda do filho cujas identidades e informações pessoais foram roubadas e suas contas bancárias limpas por meio de “trojan horses” baixados acidentalmente em salas virtuais de bate papo de grupos de apoio emocional. Embora identificado o autor do crime virtual, o detetive nada pode fazer judicialmente sem provas concretas. Então, o casal decidirá fazer justiça com as próprias mãos.
Incomunicabilidade e desconexão
O filme explora um paradoxo fundamental: como em uma sociedade onde os indivíduos criam múltiplas e simultâneas formas de conexão, pode reinar tanta incomunicabilidade e desconexão?
A exploração de uma narrativa em crash-like não foi por acaso: Rubin queria mostrar que socialmente e tecnologicamente vivemos em uma sociedade onde cada vez mais as ações humanas estão interligadas e repercutem de forma exponencial.
Munidos de seus smartphones todos os personagens estão constantemente em “dupla tela” – fenômeno de convergência tecnológica onde acessamos simultaneamente mídias diferentes como, por exemplo, assistimos a um programa de TV enquanto twitamos ou postamos em redes sociais comentários em tempo real sobre o que assistimos.
O problema é quando esse fenômeno invade as relações humanas: em várias cenas do filme vemos pais e filhos ou casais trocando palavras rápidas enquanto estão de cabeça baixa concentrados na tela de seus smartphones, tablets ou laptops.
As relações tornam-se superficiais, desatentas e cada vez mais vazias de sentido.
A certa altura a irmã de Ben olha para ele inconsciente e entubado na cama do hospital após a tentativa de suicídio e desabafa: “não me deixe sozinha com meus pais!”.
É emblemática também a afirmação do detetive especializado em crimes informáticos: “como as pessoas podem ser tão ingênuas”, exclama enquanto observa as linhas do tempo do facebook do casal vítima do roubo cibernético.
Na medida em que as relações sociais presenciais tornam-se cada vez mais frouxas e vazias, mais e mais as pessoas expõem suas vidas pessoais, sonhos, intimidades e realizações nas redes digitais.
Por que essa transferência simbólica das relações presenciais para as virtuais?
Diferente da TV que era uma mídia eminentemente visual e passiva, as novas tecnologias digitais criam um novo ambiente onde não mais o regime visual é dominante.
Na conceituação do pesquisador canadense Marshall McLuhan no seu livro Understanding Media, entraríamos em um regime midiático eminentemente “tátil e sensorial ressonante”: interatividade, sinestesia, integração, envolvimento e simultaneidade trazidas pela civilização baseada na mediação elétrica.
A TV já possuía essas características de forma latente, mas é nas mídias digitais que essa mediação elétrica chega à plenitude ao criar um “espaço ressonante”.
As redes sociais (chats, fecebook, twitter etc.) emulam muitas características das mídias orais ou presenciais, principalmente sua natureza performática, isto é, a sensação de “tempo real”, de “aqui e agora”.
Emoticons, memes, gírias e onomatopeias dão um aspecto presencial às comunicações, fazendo os usuários desenvolverem um sentimento de fazer parte de uma coletividade, mesmo isolados em seus quartos ou em algum lugar remoto do planeta.
Esse aspecto performático parece dotar às relações virtuais um aspecto de veracidade ou autenticidade que parece inexistente nas relações humanas “reais”. Talvez por aí explique o baixo senso crítico ou a “ingenuidade” a que se refere o detetive no filme “Disconnect”.
A aparência narcísica de um ego grandioso (fotos de felicidade, relatos de grandes realizações, imagens com seus bens de consumo etc.) encobre um esvaziamento da própria subjetividade que, sitiado, adapta-se e reproduz mimeticamente o entorno para sobreviver.
Essa “reprodução mimética do entorno” nada mais seria do que a ansiedade e angústia pela obtenção da aprovação ou a espera de que os amigos cliquem no “curtir” da postagem.
Como fica evidente na dramáticas condições emocionais do garoto Ben, ele é a vítima ideal do cyberbullying: com um ego fragilizado e vulnerável devido à superficialidade das suas relações no mundo real, não possui nenhum mecanismo psíquico de defesa (racionalização, negação, etc.) para enfrentar a “pegadinha” criada pela dupla de arruaceiros da escola.
Como, aliás, nenhuma das personagens vítimas do filme (o garoto do chat erótico explorado pela ambição da jornalista, o casal vítima do crime cibernético etc.) possui estrutura emocional ou consciência crítica, tornando-os vulneráveis a qualquer ataque dos predadores do mundo real.
Se no final da década dos anos 1990 caiu a primeira utopia da Internet (a terra prometida dos lucros fáceis das empresas “ponto com”), com filmes como “Disconnect” talvez esteja caindo a segunda utopia: a de que nos mundos virtuais da Internet estaria a utopia de um novo mundo democrático e civilizado onde todos partilhariam conhecimento e experiências inovadoras que enriqueceriam a cultura e a inteligência humana.
A Internet com suas redes e nódulos seria a própria materialização das redes neuronais e sinapses da mente humana, a “inteligência coletiva”.
Mas a Internet nada mais é do que a ampliação e ressonância tecnológica das velhas mazelas humanas. Ela ainda é humana, demasiadamente humana.
Postado no site Outras Mídias em 01/10/2013
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