Anoushe Duarte Silveira
Poesia pega e não tem cura. Eu nunca conheci um ex-poeta. Já vi ex-”um monte de coisas”, mas ex-poeta nunca! O difícil mesmo é saber a forma de contágio. Fala-se muito na tal da inspiração, como se fosse uma espécie de vírus que contagia, mas de onde a inspiração vem é difícil definir…
Há quem diga que ela possa ser transmitida de pessoa para pessoa, como gotas lançadas ao ar, assim, se você estiver perto de alguém já contagiado, a inspiração pode vir por ela… Outras pessoas já contaminadas às vezes libertam esse “vírus” como se fosse uma tosse que alivia, vem em um jorro só… E quando livre, sente o alívio de não mais aprisionar na alma o sentimento que o consumia, seja amor, dor, felicidade, saudade, o que ali habitasse…
Tem gente que se contagia pelo olhar… Ah, o olhar… Como bem disse Edgar Allan Poe, “Os olhos são a janela para a alma”! Tudo de lindo, de triste, de feliz, de colorido vai direto para ela… O olhar contamina seriamente e, quando você menos imagina, o que se viu é transformado em poesia.
Acho, no entanto, que a forma mais clássica de contaminação é mesmo a paixão. Seja ela por quem for: um homem, uma mulher, um filho, a vida, um lugar, uma pintura, um filme… Lista inesgotável! Muitos poetas foram contaminados assim…
Poesia não tem cura porque, uma vez em você, acaba tornando-se um estilo de vida, uma maneira de enxergar, de ouvir, de aprender e de transmitir o ensinamento. Quando você se dá conta, vê uma noite de lua pálida, como Adélia Prado viu, ou mergulha fundo em si mesmo, como Clarice Lispector fez, e descobre o desconhecido: “Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”.
Quando a poesia se manifesta nos estágios mais profundos, você acaba acreditando que mesmo em tempos ruins “…dentro de toda a alma existe a prova de que a dor como um dardo se renova quando o prazer barbaramente a ataca…”, como Augusto dos Anjos acreditou, e fica esperando ser barbaramente atacado.
O olhar também se transforma e fica tão poderoso que o poeta tem a capacidade de furtar olhares, despi-los, carregá-los, desconstruí-los, e, enfim, deixá-los levantar voo… Como Pablo Neruda: “…Tua cintura e teus seios, a duplicada púrpura dos teus mamilos, a caixa dos teus olhos que há pouco levantaram voo, a larga boca de fruta, tua rubra cabeleira, pequena torre minha”.
Quem padece dessa enfermidade tem a esperança aguçada e não crê na cura. Curar para quê? Quem padece dessa enfermidade quer mais é disseminar o vírus para reconhecer na humanidade vários afins. Portanto, o alerta é válido: Poesia pega e não tem cura!
Anoushe Duarte Silveira é brasiliense, jornalista e bacharel em direito, pós graduada em documentário – com especialização em roteiros.
Postado no site Câmara de Cultura em 07/09/2013
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