Rodolpho Motta Lima
Nada tenho, em princípio, contra a presença do gênero telenovela no cotidiano dos brasileiros. Afinal , ele constitui a versão atual dos folhetins do século XIX surgidos na França, narrativas literárias então publicadas em jornais e revistas, e que tinham como formato a apresentação parcial em série – os capítulos – e a agilidade do enredo, repleto de ação e com os chamados “ganchos”, destinados a prender a atenção dos leitores.
As nossas novelas são – ou deveriam ser – herdeiras de criações folhetinescas de ícones da literatura internacional como Flaubert, Balzac ou Victor Hugo ou de grandes expressões nacionais , como José de Alencar, Machado de Assis e outros.
A primeira obra em prosa do nosso Romantismo – “A Moreninha” – foi originalmente publicada em folhetim e constituiu estrondoso sucesso, mesmo em uma época em que o analfabetismo era majoritário entre nós. Muitos anos depois, foi Nelson Rodrigues quem se utilizou do gênero com espetacular êxito, que lhe valeu um séquito de leitores fiéis.
Assim, o interesse que as telenovelas hoje provocam é componente histórico da cultura nacional, não esquecidas , aqui, as criações radiofônicas que, antes da tevê, desde “O Direito de Nascer”, paralisavam o Brasil.
Já tivemos autores de excepcional valor dramatúrgico conduzindo as nossas novelas. Creio que o melhor foi o Dias Gomes, que, não por acaso, também se destacava no teatro e no cinema, com histórias que misturavam competentemente o tom folhetinesco, a criatividade e uma clara preocupação com os problemas sociais que nos afligiam.
Houve muitos momentos brilhantes e diversificados na novela brasileira. Seria enorme a lista. Lembro-me aqui de como “Beto Rockfeller” foi revolucionária, introduzindo a figura do anti-herói. Recordo-me da novela “Roque Santeiro”, proibida pelos homens do golpe militar e que só foi exibida 10 anos depois, com estrondoso aplauso do público. E não esqueço a beleza de “Pantanal”, que revolucionou a imagem e a temática das tele-histórias e atropelou o então consolidado monopólio global de audiência. Esses momentos maiores existiram e continuam a existir nos chamados “seriados”, infelizmente relegados a horários inacessíveis à população trabalhadora do país.
Não quero aqui, portanto, negar aos brasileiros o gosto pelas novelas, incorporadas ao seu dia a dia.
Mas tudo isso vem a propósito do “tom” que as últimas produções vêm assumindo, desde que as emissoras – a “Globo”, preponderantemente – resolveram dedicar-se à captação da erroneamente denominada “nova classe média”, com uma visão preconceituosa (típica de certas elites), que vê os menos favorecidos como um bando de pessoas a quem não se devem dar pérolas, mas farelos.
Parece que a ideia, agora, é reforçar, mais do que nunca, a baixaria, a vulgaridade, enchendo a noite de disputas pérfidas, barracos e baixarias de toda espécie voltadas para a obtenção da riqueza e do sexo como valores quase únicos, acima de todos os outros. Tudo isso com uma falsa dramaturgia que resolve um enredo capenga com personagens que estão sempre atrás das portas ou falando sozinhos.
É lamentável que grandes atores e atrizes – aqueles que fizeram história no país - aceitem participar disso.
Dos folhetins até hoje, é claro, muita coisa mudou. Que a função das telenovelas é distrair, entreter, não se discute. Nem se defende aqui o ultrapassado estilo “água com açúcar”, ou de falso moralismo. Mas a novela – pelo seu alcance - pode e deve ser, também, contribuir para o crescimento dos valores do cidadão.
Afinal, a educação de um povo passa por muitos agentes, entre eles a mídia.
Na atual novela das 9 da Globo, por exemplo, é difícil encontrar ali um personagem que represente um exemplo positivo.
São traições tratadas com vulgaridade, chantagens generalizadas, mães que estimulam as filhas ao “golpe do baú”, pai que sequestra filha, exploração melodramática e perversa de doenças como o câncer, discriminações disfarçadas de humor (a mulher gorda e virgem) e uma interminável série de situações negativas envolvendo falcatruas, que tem como móvel o dinheiro.
As mais pérfidas atitudes são atribuídas ao personagem mais “engraçado”, pois o mundo gay, como sempre, é apresentado como exótica fonte de riso...
Mas nada melhor que depoimentos insuspeitos de quem vê a coisa de dentro. A atriz Irene Ravache declarou recentemente (na coluna “Gente Boa”, do “Globo”) sobre as novelas: “Antes, as protagonistas eram heroínas, bons exemplos. Hoje, enfiam o pé na jaca. Sinto falta de algo mostrando que vale a pena ser honesto. Há uma certa leviandade, aquela coisa: Eu e minha filha temos um caso com o mesmo homem e termina tudo bem. Não termina, é horrível se acontece”.
Não me importa saber, aqui, se o público gosta ou não daquilo que lhe servem. Ele continuaria gostando se o nível subisse e ganharia na sua formação cultural e moral. E isso, no meu modo de ver, teria que ser cobrado das emissoras, que são concessões públicas e que se colocam por aí como hipócritas fiscais da “moralidade e dos bons costumes”.
Nosso patrimônio literário tem muita coisa a oferecer, muito a ser levado ao público, sob a forma de novelas, no lugar desse circo que afasta os brasileiros do seu acervo cultural e da identificação dos seus verdadeiros problemas.
Chama-se a isso, desde sempre, alienação. Uma alienação construída, a serviço de objetivos que envolvem a necessidade de inocular uma visão distorcida da realidade. A mesma visão que, hoje, se percebe em outras esferas da manipulação midiática. Pode-se argumentar que a coisa é bem feita. Pode ser. Eu prefiro dizer, já que citei Nelson Rodrigues, que estamos diante de uma falsa arte, “bonitinha mas ordinária”...
Postado no site Direto da Redação em 01/09/2013
Trechos do texto grifados por mim
Algumas novelas que assisti que mesclavam entretenimento, educação e cultura !
A moreninha - Globo
Senhora - Globo
A escrava Isaura - Globo
Sangue do meu sangue - SBT
Éramos seis - SBT
Pantanal - Manchete
O Cravo e a Rosa - Globo
Sinhá Moça - Globo
Escrito nas estrelas - Globo
Essas mulheres - Record
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