O silêncio dos inocentes
“(…) aos réus que se abstenham de realizar qualquer atividade no pátio da escola, sob pena de multa no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por cada vez que esta decisão for descumprida. (…)”
Andrea da Costa Braga e Fernando Falcão*
A recente decisão judicial, cujo trecho citamos acima, determinou que as crianças da Escola União Criança do Grêmio Náutico União (GNU), em Porto Alegre, não possam mais usar o pátio da escola. Assim, as crianças de uma faixa etária entre os dezoito meses e seis anos não podem mais brincar, praticar esportes ou tomar sol no terreno da escola.
A alegação foi de que o barulho das brincadeiras atrapalhavam as atividades da vizinha, escritora gaúcha, autora da ação. Não conhecemos todos os detalhes da ação judicial e de sua sentença, com força de jurisprudência e, como todos sabem, decisões da justiça são para serem cumpridas.
Mas, como não poderia deixar de ser, fomos surpreendidos, afinal, não é todo dia que alguém tem sua filha de quatro anos envolvida na perturbação do sossego e da tranquilidade alheios, assim, nós, como pais de uma das infratoras gostaríamos de tecer algumas considerações.
Não há dúvidas de que barulhos, ruídos e música indesejada são perturbadores. Em cidades como a nossa, de praticamente dois milhões de habitantes, todo tipo de ruído é produzido, muitos deles certamente mais perturbadores que a algazarra infantil: canteiros de obras, volume de trânsito de veículos, a transformação dos parques urbanos em auditórios ao ar livre para todo tipo de evento, bares que ocupam as calçadas, carros de som, e o volume cada vez mais alto das conversas nos aparelhos celulares, inclusive dentro de elevadores.
O cotidiano das cidades, como todos sabem, pressupõe a conciliação de interesses e a ponderação das vantagens e desvantagens da convivência comunal e da urbanidade. É ter que lidar com as adversidades diárias, do descaso com os espaços públicos à crise de mobilidade.
Mas também abre a possibilidade dos passeios à pé, à fruição da vida de bairro, à atualização da informação e dos repertórios através do movimento das pessoas e da copresença diversificada.
A urbanidade compensa os caminhões betoneira e de entregas circulando às cinco da manhã na sua porta porque isso significa que você tem um supermercado próximo à sua casa, está perto do seu local de trabalho, há escolas onde seus filhos estarão, dentre outras coisas, expandindo e aprimorando sua socialização enquanto você trabalha.
É justamente para tentar regrar a vida numa sociedade complexa que existem as leis e as normas e, por competência constitucional, cabe ao município a sua elaboração e a sua fiscalização. Pois bem, a Escola União Criança, para funcionar, necessitou cumprir uma série de procedimentos junto à Prefeitura de Porto Alegre, que, com sua autoridade³, concedeu o alvará de funcionamento à instituição, ou seja, do ponto de vista das regras estabelecidas, não há impedimento para que a Escola e todas as atividades a ela inerentes funcionassem plenamente no local onde está instalada.
É disto emergem algumas das considerações que gostaríamos de tecer:
1. A decisão judicial traz, para utilizarmos uma expressão em voga, insegurança jurídica, uma vez que, mesmo havendo cumprido com todos os quesitos previstos em Lei para a instalação e funcionamento, escolas correm o risco de não poderem usar seus pátios e quadras esportivas para qualquer atividade que produza ruído, sob pena de punição;
2. O zelo judiciário ao sossego e ao descanso individuais também será aplicado se solicitado pelos vizinhos do Aeroporto Salgado Filho, por exemplo? E aos vizinhos dos estádios de futebol?
3. Somos vizinhos do Hospital Moinhos de Vento e diariamente caminhões transitam por nossa rua para retirar resíduos do hospital e realizar entregas. O ruído dos fluxos no hospital perturbam, sobretudo em horários noturnos. No entanto seria razoável impedir o funcionamento do hospital ou a coleta de resíduos? De acordo com a decisão judicial em relação à escola, nos parece que sim. O bem estar pessoal estaria acima de qualquer serviço de utilidade pública prestado à comunidade?
4. Ao privilegiar o direito de um, o Juiz tolheu o direito de muitos, nesse caso, crianças, impedidas de brincar ao ar livre na escola, contrariando, salvo engano, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei 8.069, de 13/07/1990 em seus Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis e Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: I – ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários ressalvadas as restrições legais; II – opinião e expressão; III – crença e culto religioso; IV – brincar, praticar esportes e divertirse; V – participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;
5. Se as crianças são impedidas de transitar pelos os espaços externos das escolas só existem duas soluções: transformar todos os espaços abertos em fechados e criar isolamento acústico, o que as impede de contato mínimo com ambientes abertos ou segregar espacialmente as escolas, situando-as em quarteirões ou setores exclusivos. Ambas soluções inadequadas do ponto de vista social, ecológico, urbanístico e pedagógico;
6. Salvo engano, a sentença desautoriza a Prefeitura de Porto Alegre como instância responsável pelo planejamento urbano da cidade e pela concessão de autorizações e alvarás de funcionamento e localização.
Curiosamente, do outro lado da capital, no Bairro Cidade Baixa, conhecido por seus inúmeros bares, café, etc., os moradores, cansados dos excessos de ruído, só que neste caso, durante o horário de silêncio, lograram um acordo com estabelecimentos comerciais, muitos deles funcionando em desacordo com os seus alvarás.
A assimetria das soluções é gritante: num caso, temos vários moradores reclamando do descumprimento do horário de silêncio por estabelecimentos comerciais em desacordo com as normas.
No outro, uma moradora, com alguma notoriedade, reclamando da algazarra de crianças menores de seis anos, brincando no pátio de uma escola, que cumpriu todas as exigências legais.
Que sociedade é esta que aceita a poluição, que transforma até as praias em ambientes artificiais, impedindo a fruição contemplativa da natureza, que só circula em ambientes fechados dos quais se sai tonto de tanto barulho, que naturaliza a discriminação e a violência a ponto de subverter as noções de bem estar público e privado?
Como a justiça pode naturalizar o encarceramento da infância e a intolerância, contribuindo para amplificar e não solucionar conflitos comunitários, uma briga de vizinhos? Tolera-se a destruição do meio ambiente, da paisagem da cidade, naturaliza-se a segregação social e espacial em prol do desenvolvimento, mas não crianças brincando?
O símbolo da justiça é a divindade romana Iustitia, representada por figura feminina vendada com uma balança nas mãos. Como todos sabem é uma alegoria ao fato de que, independente de quem sejam as partes, a justiça, ao pesar os fatos tomaria uma decisão equilibrada. Não parece ser o caso.
(*) Arquitetos e pais de uma das “infratoras”.
Postado no blog RS Urgente em 30/11/2012
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