Por Alcir Martins *
Em 1847, na Inglaterra, uma lei passou a limitar a jornada de trabalho em dez horas diárias. Sim, dez horas diárias! Se a este quadro somarmos que não havia descanso semanal remunerado, nem férias anuais, nem garantias previdenciárias ou regulação salarial, formamos um cenário dramático que parece ficcional aos olhos do século XXI. Apesar de ainda convivermos com várias modalidades de trabalho precarizado, ao menos nos textos legais se reconhece a existência de direitos às trabalhadoras e trabalhadores.
No início dos anos 2000, na França, a Lei Robien estabeleceu jornadas de trabalho de 35 horas semanais, com políticas transitórias e incentivos para garantir a manutenção dos salários num período de adaptação e confirmação da nova realidade laboral. Os mais de 150 anos que separam uma legislação da outra viram acontecer alterações substanciais no nosso modo de produção e nas relações de trabalho. Absorvê-las para dentro do mundo do trabalho, a partir de uma perspectiva da classe trabalhadora é fundamental.
No Brasil, em 2003, o Decreto Presidencial 4.836 avançou na discussão sobre a jornada diária, possibilitando que o serviço público organize turnos contínuos de trabalho, para atender por mais tempo e com mais qualidade ao público. Embora a iniciativa privada e o setor público tenham lógicas diferentes, é importante conectar ambas as lutas por jornadas mais humanizadas, pois no fundo são uma luta só. Ambas colocam frente a frente o tempo de vida e o tempo do lucro, seja esse lucro medido pela mais-valia que vai para o cofre particular do patrão ou apropriada pelo Estado, que a redistribui mais ou menos justamente para a sociedade.
Os avanços tecnológicos fizeram o tempo de trabalho necessário recuar e a reorganização das jornadas de trabalho, comprovadamente, eleva a produtividade por hora trabalhada. As rotinas de trabalho de anos atrás estão imensamente mais ágeis. Imaginem o tempo que se gastava para elaborar, redigir e entregar um documento simples há 10 ou 20 anos atrás? Utilizava-se a máquina de escrever e não o computador. A informação só podia circular em dimensões físicas e hoje, virtualizada na Internet, cruza e contorna o mundo todo em instantes. As linhas de produção dos mais diversos setores tiveram avanços enormes em termos tecnológicos. Há um acréscimo inegável da produtividade e que pode ser amplificada pela jornada de trabalho reduzida.
Estudos franceses sobre os impactos da Lei Robien, comprovaram a geração de mais postos de trabalho e, em especial, o incremento da produtividade por hora trabalhada. Além disso, notou-se uma queda sensível nos índices de adoecimento por questões laborais e afastamentos do trabalho para tratar da saúde.
Esse conjunto de fatores garantiu que a mais-valia não fosse alterada negativamente, mantendo os lucros dos empregadores. Ou seja, não se trata de uma revolução (ainda!) mas apenas de redistribuir entre todos, os frutos do desenvolvimento tecnológico que deve pertencer a toda a humanidade. As mediações propostas na experiência francesa de limitação de jornada, por exemplo, buscavam ampliar o nível de emprego, apoiando-se em duas razões diretamente proporcionais: aproveitamento da tecnologia e potencialização da produtividade por hora trabalhada.
Em síntese, o que está dito acima, embora aponte para concepções teóricas e práticas bastante avançadas para o momento em que vivemos, está longe de se colocar como elemento subversivo ou revolucionário. No nosso tempo ainda horroriza ver o exército de mão-de-obra de reserva; batalhões de desempregados ao lado de potencial abundância negligenciada e é para combater esta mazela que a redução da jornada de trabalho pode ser discutida primeiramente pela sociedade.
Cada vez mais o conhecimento humano possibilita que se produza mais com menor utilização de trabalho vivo. No entanto, a jornada de trabalho é, entre outras coisas, um mecanismo de controle dos trabalhadores. Não foram poucos os exemplos em que setores da economia, dos serviços a plantas industriais, conseguiram manter níveis de produção apesar da diminuição da presença humana – seja por rearranjos, desemprego ou greves. Talvez sem querer, o capitalismo demonstrou a possibilidade que a humanidade desfruta hoje de ampliar os excedentes de tempo livre do trabalho e, aos poucos, ir se liberando do trabalho.
Esta possibilidade fundamental é o objeto de uma importante disputa: se, por um lado, os capitalistas tendem a transformá-la em diminuição do emprego, jogando cada vez mais gente ao desemprego ou impedindo o acesso a postos de trabalho; de outra parte, pela perspectiva da classe trabalhadora, a potenciação tecnológica aplicada ao mundo do trabalho deve ser revertida em mais tempo livre, através da redução das jornadas de trabalho e de ampliação da força de trabalho, com mais gente trabalhando.
Lembrando que, desta forma, ainda seguiriam praticamente intactas as relações de produção e somente quando nos for possível questionar a obrigação de trabalhar pra viver estaremos avançando para uma demanda revolucionária, que altere, de fato, o estado das coisas para que todos tenham vida em abundância.
* técnico em assuntos educacionais na UFSM e coordenador de Comunicação Sindical da ASSUFSM
Postado no blog Sul 21 em 23/11/2012
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