Jornalista há anos, poeta há algum tempo, eu devia saber disso desde sempre.
Mas faz pouco tempo que descobri a força da palavra, em seu sentido mais amplo. Foi por meio do feminismo, de ver como a violência contra as mulheres se manifesta, principalmente, no campo do simbólico.
Foi aí que vi a força da piadinha, do apelido engraçadinho, daquele meme bobinho que reproduz a dicotomia da mulher-pra-casar e da mulher-pra-transar. Vi a força reafirmadora do discurso na propaganda, nas revistas. E vi o quanto eu, mesmo querendo ser certa, errava. Porque reproduzia a linguagem sem questionar. Nós jornalistas sabemos – ao menos em tese – que a linguagem repetida sem questionamento vira clichê.
O que aprendi no ativismo é o lado mais perverso do clichê: o estereótipo. Palavra repetida tem força de criação. De profecia. Forma o mundo e inventa categorias inteiras. Agrupa as pessoas de certas formas e não de outras, e o que poderia ser apenas uma escolha de conjunto acaba sendo a escolha de um mundo.
É aquilo: a palavra tem poder. O discurso tem força. Não é a única coisa a ter força, existem outros tipos de violência no mundo, muitas delas além do discurso. Mas a palavra inegavelmente é forte o suficiente para perpetuar e criar realidades.
E justamente por isso, é preciso ter paciência. Muita mesmo. A palavra usada como arma – mesmo que seja de defesa – pode ferir. A agressividade é uma estratégia que pode ganhar o respeito, mas junto com o respeito vêm o medo e o silenciamento. Isso, talvez, seja uma forma de alienação.
E se a gente quer mudar as coisas, talvez alienar as pessoas do nosso discurso não seja a melhor forma de agir. Não que todo mundo precise ser feminista limpinha fofinha adorável, não é isso. Tem que poder ser contundente, falar o que pensa. Mas a gente, mais que ninguém, sabe que palavra tem força. E se a gente solta sem pensar, aquilo volta.
Ação e reação. Se estou de bike e um carro me fecha na rua e quase me mata, quero muito xingar o desgracento até o fim dos dias, rogar praga sobre seus descendentes e os filhos de seus descendentes até a sétima geração. Mas se eu faço isso – e já fiz muitas vezes – passo o resto do trajeto com medo, apavorada de o cara ficar puto e se vingar. Ou de se vingar em outro ciclista, depois.
Não que eu precise ficar calada ali, bicicleteirinha com vergonha de existir, pedindo desculpas por estar no cantinho da rua. Não. Mas posso me manifestar de outras formas. Dar um tchauzinho. Mandar beijinho. Perguntar por que a pessoa fez aquilo. Cantar Gangnam Style em versão heavy metal. Sei lá. Qualquer coisa que não seja continuar o ciclo de agressão.
Justamente porque a palavra tem tanto poder, a gente precisa se conter. Por mais certa que a gente ache que esteja. Por mais justa. Por mais que a nossa causa seja a correta. Porque a palavra recebida como arma também tem força e machuca.
E as pessoas são só pessoas, sabe. Que elas vão errar é líquido e certo, faz parte de ser pessoa, de ser gente. Algumas irão pedir desculpas, outras não. Algumas irão se odiar por semanas, outras irão criar casquinha.
Mas e aí, o que aquilo adiantou? Serviu de escape momentâneo, de catarse, mas e daí? Gerou felicidade, trouxe gente nova para a discussão, ajudou a ampliar o debate? Na maioria das vezes, não. Essas divisões são uma catarse coletiva que podem servir como momento de pertença para grupos excluídos. Mas que no fim das contas, aliena um monte de gente que poderia ser um aliado mais próximo.
É preciso aprender a debater, a discordar, sem partir pro xingamento. Aprender a se sentir ofendidas sem achar que isso é justificativa pra perseguições e ameaças, ou pra incentivos a perseguições e ameaças. Tem que ser hippie nessa hora, gente, não tem jeito. Quase budista.
Essas brigas, essas tretas, no longo prazo não significam nada. Eu sei que faz parte do ser humano. Sei também que já perdi as estribeiras, rodei as tamancas e fiz todos os clichês esquentadinhos. E sei que vou fazer de novo. Mas a gente precisa começar a repensar isso, achar formas de não cair nessa.
Acredito totalmente em discutir e discordar. Mas, para a sociedade que a gente quer, é importante o processo. Como a gente vai chegar lá. E se pra chegar lá a gente precisar usar de armas que sempre foram usadas contra a gente, e a gente precisar apontar dedos contra colegas o tempo todo, tem algo errado.
A palavra tem poder. Por isso, temos que pensar bem antes de apertar o send naquele e-mail raivoso, de dar “curtir” num comentário de ódio, de chamar de nazista alguém que só está discordando.
O processo importa. O discurso também. Não é fácil, nem automático. Por isso é que é preciso lembrar sempre, refletir sempre.
E aí é aquela coisa, cada uma começa por si. Revendo as próprias atitudes, antes de apontar dedos. Olhando de frente para o nosso teto de vidro. Que é o que dá pra fazer.
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