Independência e Autonomia Femininas
Por Ana Paula Vosne Martins
Passos para uma relação mais igualitária
Há uma distinção entre libertação e autonomia. A libertação refere-se a uma ação que visa romper com uma condição negativa, geralmente de subalternidade e inferioridade. A libertação faz parte de um movimento que pode ser sócio-histórico ou individual visando alcançar independência, capacidade de se auto-governar, liberdade.
Já a autonomia é um estado que não precisa estar relacionado com o movimento de ruptura com uma ordem anterior de dominação. A autonomia exige consciência, capacidade de escolha, liberdade de pensamento e de ação, enfim, uma atitude em relação a si e ao mundo que não é de oposição a uma situação negativa, mas de afirmação de si na relação com o mundo e com os outros.
Em nossa sociedade percebo que as mulheres se libertaram de uma condição de subalternidade social, jurídica e política, mas não chegaram à autonomia enquanto indivíduos. Indivíduos autônomos não são dependentes, o que parece óbvio, mas infelizmente não é.
Não quero dizer que somente as mulheres são dependentes, pois os homens também o são de diversas maneiras, contudo gostaria de refletir sobre esta especificidade da dependência feminina. Está claro que não me refiro à dependência econômica, mas à dependência das expectativas masculinas; a esta necessidade de adequação a um modelo feminino estereotipado que agrade os homens, como se tudo dependesse disto.
É esta dependência que infantiliza as mulheres de diferentes classes sociais e níveis de escolaridade, pois não se trata de um fenômeno de classe, mas cultural. Tal condição se sustenta em arraigados valores e crenças que opõem homens e mulheres como se fossem indivíduos de mundos diferentes – talvez seja por isso que livros de auto-ajuda que tratam das relações de gênero façam tanto sucesso, pois só reafirmam esta oposição e dão conselhos para “lidar” melhor com ela ou tirar vantagens.
É esta pretensa autoridade masculina em julgar e dizer o que é melhor, o que é mais adequado e desejável que precisa ser enfrentada pelas mulheres. No entanto, tal atitude desmistificadora demanda mulheres autônomas, que sejam corajosas, que tenham auto-estima e tudo isto não vem de graça ou é concedido por alguém ou alguma instituição: é fruto de ação assertiva e de consciência e isto só se conquista coletivamente, ou seja, por uma educação para a autonomia.
Diferenças de comportamento na hora de encontrar o parceiro
Penso que a necessidade afetiva de encontrar alguém com quem se possa viver e compartilhar dores e amores é igual para homens e mulheres, pois ambos são seres racionais e emocionais. O que faz parecer que os homens ajam de forma mais “natural” em relação a esta necessidade são os modelos de masculinidade construídos histórica e culturalmente.
Nossa cultura ainda reforça muito a necessidade e a dependência feminina dos homens, como se a existência das mulheres dependesse da presença do homem em suas vidas. Isso nos faz pensar por que, por tanto tempo, as mulheres solteiras foram alvo de piedade ou de zombarias, muito mais que os homens solteiros; por que o casamento é ainda cercado de fantasias românticas para as mulheres muito mais do que é para os homens; enfim, tantos outros exemplos que poderíamos lembrar aqui de uma assimetria notável entre as expectativas femininas e masculinas no que diz respeito às relações amorosas.
É preciso encarar que estas assimetrias nada têm de natural ou de instinto. As mulheres não têm um instinto gregário mais forte do que os homens, mas elas são educadas desde muito pequenas a desejar viver com um homem e a ter filhos com ele sob certas condições, a partir de um modelo muito limitado: mães têm filhos e cuidam deles; pais fazem filhos e os sustentam; maridos cuidam de suas esposas e estas devem fazer por merecer tais cuidados e atenções.
Não há nada de errado em desejar ser mãe e ter filhos, pelo contrário, se for um desejo nada melhor e mais satisfatório que ele se realize. A questão que se coloca hoje para as mulheres é a limitação de suas vidas a este modelo; é achar que toda a felicidade deste mundo se resume a certas fantasias, pois no mundo real homens e mulheres não agem conforme os príncipes e as princesas dos contos infantis. São o que são, seres contraditórios e imperfeitos; e o nosso desafio é romper com as fantasias e os modelos infantilizados de masculinidade e feminilidade para vivermos relações mais igualitárias.
OBS: Ana Paula Vosne Martins é doutora em História pela UNICAMP, com pós-doutorado pela Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ e uma das coordenadoras do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal do Paraná. É também autora dos livros “Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX” (Editora Fiocruz) e “Um lar em terra estranha” (Ed. Aos Quatro Ventos)
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